Editorial

cadastre-se e leia

Herança maldita

Insatisfeita com o resultado das recentes eleições, uma porção conspícua de eleitores invoca a proteção dos quartéis com ímpeto mussoliniano

O povo aglomera-se diante dos quartéis, enquanto Bolsonaro derrota a si mesmo - Imagem: Miguel Schincariol/AFP e Alan Santos/PR
Apoie Siga-nos no

Quando, graças à determinante contribuição dos integrantes da chamada República de Curitiba, Jair Bolsonaro foi eleito ao se aproveitar da ausência de Lula preso, não faltou quem qualificasse o ungido como fascista. Neste mesmo espaço, CartaCapital discordou: tratava-se apenas de um energúmeno demente, e assim nós o consideramos até os dias de hoje. Dias aziagos, na verdade: a truculência bolsonarista despertou em largas áreas da população brasileira inconfundíveis laivos fascistoides, que a recente eleição excitou além das contas.

Esta publicação não percebeu o que poderia resultar daquele pleito, e por isso pede desculpas aos seus leitores. De fato, havia à espreita sentimentos e humores, então inesperados, guardados entre o fígado e a alma de incontáveis brasileiros. É o que se verifica hoje nas manifestações a se multiplicarem de um dia para outro contra o resultado eleitoral que levou à derrota o vencedor de 2018. A quantidade crescente de cidadãos que a Lula teriam preferido Bolsonaro e que acorrem à porta dos quartéis como ao muro para suas lamentações vale como demonstração deste súbito surto de bolsonarismo.

1922: Mussolini chega a Roma ao cabo da Marcha que o levou ao poder – Imagem: Ann Ronan/Picture Library/AFP

Não há mesmo como comparar Bolsonaro com Benito Mussolini, ditador derrubado por seus próprios companheiros, liderados por Dino Grandi, em julho de 1943, e mantido em uma prisão apenínica. Foi libertado por um comando nazista e, finalmente, conduzido à presença de Adolf Hitler, de quem se considerava mestre de ideologia. Com apoio do führer, em Milão fundou uma república fascista e formou um pequeno exército para juntar-se às forças alemãs que combatiam contra a Resistência, em constante progresso no norte da península.

Ao cabo de sua aventura, no momento em que tentava fugir para a Suíça em busca de salvação, foi bloqueado pelos próprios guerrilheiros em companhia da derradeira amante, Claretta Petacci. Estudos recentes mostram que se tratou, além de tudo, de um maníaco sexual, estuprador, se necessário, na imensa sala do Palácio Veneza, onde pôs à prova seu instinto feroz a lhe sugerir ora o estupro, ora o assassinato dos inimigos. Foi a personificação de um nacionalismo de extrema-direita frequentemente patético.

Bolsonaro, admitamos, foi muito mais comedido quando pretendeu expor a sua virilidade. Impossível negar, no entanto, que quem invoca o seu retorno e a intervenção militar alimenta a esperança do golpe, para impor, na interpretação dos dizeres da bandeira, o progresso a decorrer de uma ordem muito severa, senão francamente mussoliniana. Percebe-se que Bolsonaro, vítima da sua própria loucura, não seria capaz deste gênero de rompante. Pelo contrário, mas nele é evidente a covardia, que há dias o resguarda em um silêncio impenetrável, enquanto os filhos saem em busca de um passaporte italiano, justificado pelo seu sobrenome.

Antes de partir para o Egito, Lula deveria ter assistido ao documentário de Pedro Andrade, excelente munição para sua intervenção na conferência sobre a crise ambiental

Bolsonaro, tudo indica, já é passado e, caso seja cumprida a ameaça formulada por Alexandre de Moraes, presidente do TSE e ministro do STF, “os extremistas antidemocráticos merecem e terão a aplicação da lei penal”. Nestas condições, a declaração haveria de compreender, portanto, os componentes da chamada República de Curitiba, a começar por Sergio Moro e Deltan Dallagnol, que elegeram Bolsonaro em 2018, graças à prisão de Lula.

Moraes falava em uma conferência do Grupo Lide, fundado por João Doria para debater “o respeito à liberdade, à democracia e à economia do Brasil a partir de 2023”. A mediação foi do imortal Merval Pereira, escombro da Globo da família Marinho, comandada pelo patriarca Roberto, que, por sua vez, nutria dúvidas em relação à possibilidade do seu próprio passamento ao repetir “Se eu morrer….”

A turma dos magistrados reuniu-se no Harvard Club de Nova York e do evento participaram quatro ministros do STF, Antonio Anastasia, ministro do TCU, e Carlos Ayres Britto, ex-ministro e ex-presidente do mesmo Supremo, figura detestável que me visitou quando dirigia a ­IstoÉ e me causou a pior das impressões.

Cena grotesca: o usurpador golpista Michel Temer fala na conferência organizada por João Doria, na presença de ministros do Supremo – Imagem: Vanessa Carvalho/Brazil Photo Press/AFP

Também marcaram presença no evento figuras de governos anteriores, além de Michel Temer, corrupto e corruptor, como é do conhecimento até do cais do porto de Santos. O presidente do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas, entregou, na quarta-feira 16, ao coordenador da transição, o vice Geraldo Alckmin, um relatório que lista 29 áreas críticas, ameaçadas de “vulnerabilidade a fraudes, desperdício, abuso de autoridade, má gestão ou necessidade de mudanças profundas para garantir o cumprimento das políticas públicas”.

Segundo os técnicos do TCU, existe um prejuízo de 5,6 bilhões de reais por ano em pagamentos indevidos. De todo modo, esta já é uma página virada, embora ainda submetida ao crivo do vice-presidente. Fica a açular perplexidades e temores a onda de protestos contra o resultado do pleito recente. E a grita à porta dos quartéis.

Ao velho e querido amigo Lula permito-me sugerir que, por ora, à espera da posse no dia 1º de janeiro de 2023, não force a sensação de que já está governando, a mostrar que, do ponto de vista da repercussão internacional, o País regressa aos velhos tempos. A presença de Lula na conferência sobre a crise ambiental em andamento no Egito poderia conduzir o observador a esta apressada conclusão. A respeito vale uma observação: no vídeo da televisão Vivo aparece um importante documentário sobre a atual situação na Amazônia. Trata-se do trabalho de um ex-modelo de anúncios sobre resorts nababescos munidos de campos de golfe de infinitos buracos e piscinas adaptadas, não sei como, à prática do surfe, que se tornou excelente jornalista, a documentar a situação atual na maior bacia hidrográfica do mundo.

O ex-modelo torna-se jornalista competente ao entrevistar Alessandra, líder indígena, e ao mostrar sem disfarces a devastação amazônica – Imagem: Vice TV/Globoplay, Redes sociais e iStockphoto

Teria sido útil se este trabalho, meritório de tantos pontos de vista, tivesse sido conferido por Lula antes da sua viagem. Chama-se este profissional Pedro Andrade, jovem espigado de boa estampa, que não hesita em mostrar como se alarga a agressão das motosserras na floresta, para abrir caminho a rebanhos e à soja. E nos apresenta também a indígena Alessandra, combativa líder da resistência das tribos ameaçadas, cidadã empolgante, destemida além do limite, em plena luta a favor do pulmão do planeta.

A câmera deste novo e competente jornalista vasculha todo o espaço à sua disposição, a exibir conhecimento profundo da região e dos seus problemas crescentes. Nada lhe escapa, o rio gigante e seus afluentes, a população ribeirinha, uma fauna de peixes, além de única, inesgotável. E a dura vida dos verdadeiros donos daquelas terras, de mil maneiras acuados. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1235 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Herança maldita”

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

10s