Editorial

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Energúmeno demente

O ex-capitão só é mesmo possível no Brasil. A ignorância explica

Eleito pelo enésimo golpe, apontado como fascista, nada tinha de Mussolini, embora também mereça a repulsa dos cidadãos de bem – Imagem: Arquivo/AFP e Marcelo Camargo/ABR
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Ao cabo de um enredo espantosamente brasileiro, a resultar no enésimo golpe de Estado, o ex-capitão e notório energúmeno demente aproveitou-se da situação que afastava Lula do páreo e foi eleito para a Presidência da República. Até na redação de CartaCapital houve quem acentuasse a vitória do fascismo. Em seus editoriais, a revista tratou de demonstrar o engano cometido por analistas apressados. Não se destina esta afirmação a provar a diferença entre um pobre-diabo covarde conduzido ao poder por um povo tragicamente ignorante e uma figura torpe politicamente poderosa no século passado.

À instável Itália golpeada pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial, a lhe infligir a perda de 600 mil soldados destreinados e mal armados, e ainda vítima de monstruosa disparidade regional entre Norte e Sul, o Tratado de Versalhes, destinado a definir as novas fronteiras europeias, atribuía uma posição subalterna em relação às potências naquele momento histórico. Mussolini valeu-se da situação para chegar ao poder e ali ficar por vinte e um anos.

Não faltou no contexto a guerra civil no Norte da península, por obra do confronto envolvendo as forças fascistas concentradas na república fundada pelo ­Duce e o embate entre os guerrilheiros comunistas e liberais e as forças ainda fiéis a ­Mussolini. Ao fugir de carro no rumo da fronteira com a Suíça em companhia da última amante, Claretta Petacci, ele foi preso e fuzilado, juntamente com a companheira, depois de uma noite indormida. Os cadáveres, levados a Milão, foram pendurados de cabeça para baixo em uma bomba de gasolina de uma praça periférica.

Dia 8 de janeiro de 2023: tentativa de golpe bolsonarista – Imagem: Joédson Alves/ABR

Ao lado deles figuravam outros nove qualificados representantes da hierarquia do comando mussoliniano a balançar no ar primaveril. Vale lembrar que com isso a península escanteou a sua ­Nuremberg. Ditador feroz, assassino de vários opositores de esquerda e mesmo dentro do seu partido, maníaco sexual autor de vários estupros cometidos no seu imenso gabinete do Palácio Veneza, no centro de Roma, Mussolini influenciou desde ­Hitler até Francisco Franco, além de vários sátrapas espalhados pelo continente.

Como se percebe, a comparação com o nosso energúmeno demente é totalmente inviável, embora ambos, cada qual a seu modo, mereçam a repulsa. O que avulta é esta incompatibilidade ao se tratar de figuras tão distintas. Difícil entender as razões pelas quais, nos dias de hoje, 40% dos brasileiros insistiriam na preferência por Bolsonaro. Qual seria a mais premente motivação? No fundo, percebe-se a consequência sempre presente daquela que é, sem dúvida, a maior desgraça do País: a escravidão. É a nostalgia dos capitães-do-mato e das suas inauditas violências.

Bobbio falou e disse – Imagem: Leonardo Cendamo/Leemage/AFP

Mais uma vez nota-se a ausência fatal de uma esquerda consciente da importância da sua necessidade inescapável. Também deste ponto de vista a escravidão foi decisiva. E a grotesca tentativa de conciliação manteve-se tempos adentro inexoravelmente, sem atentar que esta conciliação somente funciona ao se dar entre as elites, eventualmente atritadas em torno de uma questão que só a elas respeita.

Ocorre-me ter faltado a leitura de ­Norberto Bobbio e da sua exemplar lição sobre o que ainda significa hoje ser de esquerda. Assim é quem está sempre incansavelmente a favor dos desvalidos da terra, estejam onde estiverem. Mas talvez a leitura das páginas do pensador italiano seja pedir demais ao povo mais ignorante do mundo, e quem tiver dúvidas a respeito consulte os índices de escolaridade mais rasteiros que se possa imaginar. •

Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Energúmeno demente’

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