Editorial
Energúmeno demente
O ex-capitão só é mesmo possível no Brasil. A ignorância explica
Ao cabo de um enredo espantosamente brasileiro, a resultar no enésimo golpe de Estado, o ex-capitão e notório energúmeno demente aproveitou-se da situação que afastava Lula do páreo e foi eleito para a Presidência da República. Até na redação de CartaCapital houve quem acentuasse a vitória do fascismo. Em seus editoriais, a revista tratou de demonstrar o engano cometido por analistas apressados. Não se destina esta afirmação a provar a diferença entre um pobre-diabo covarde conduzido ao poder por um povo tragicamente ignorante e uma figura torpe politicamente poderosa no século passado.
À instável Itália golpeada pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial, a lhe infligir a perda de 600 mil soldados destreinados e mal armados, e ainda vítima de monstruosa disparidade regional entre Norte e Sul, o Tratado de Versalhes, destinado a definir as novas fronteiras europeias, atribuía uma posição subalterna em relação às potências naquele momento histórico. Mussolini valeu-se da situação para chegar ao poder e ali ficar por vinte e um anos.
Não faltou no contexto a guerra civil no Norte da península, por obra do confronto envolvendo as forças fascistas concentradas na república fundada pelo Duce e o embate entre os guerrilheiros comunistas e liberais e as forças ainda fiéis a Mussolini. Ao fugir de carro no rumo da fronteira com a Suíça em companhia da última amante, Claretta Petacci, ele foi preso e fuzilado, juntamente com a companheira, depois de uma noite indormida. Os cadáveres, levados a Milão, foram pendurados de cabeça para baixo em uma bomba de gasolina de uma praça periférica.
Dia 8 de janeiro de 2023: tentativa de golpe bolsonarista – Imagem: Joédson Alves/ABR
Ao lado deles figuravam outros nove qualificados representantes da hierarquia do comando mussoliniano a balançar no ar primaveril. Vale lembrar que com isso a península escanteou a sua Nuremberg. Ditador feroz, assassino de vários opositores de esquerda e mesmo dentro do seu partido, maníaco sexual autor de vários estupros cometidos no seu imenso gabinete do Palácio Veneza, no centro de Roma, Mussolini influenciou desde Hitler até Francisco Franco, além de vários sátrapas espalhados pelo continente.
Como se percebe, a comparação com o nosso energúmeno demente é totalmente inviável, embora ambos, cada qual a seu modo, mereçam a repulsa. O que avulta é esta incompatibilidade ao se tratar de figuras tão distintas. Difícil entender as razões pelas quais, nos dias de hoje, 40% dos brasileiros insistiriam na preferência por Bolsonaro. Qual seria a mais premente motivação? No fundo, percebe-se a consequência sempre presente daquela que é, sem dúvida, a maior desgraça do País: a escravidão. É a nostalgia dos capitães-do-mato e das suas inauditas violências.
Bobbio falou e disse – Imagem: Leonardo Cendamo/Leemage/AFP
Mais uma vez nota-se a ausência fatal de uma esquerda consciente da importância da sua necessidade inescapável. Também deste ponto de vista a escravidão foi decisiva. E a grotesca tentativa de conciliação manteve-se tempos adentro inexoravelmente, sem atentar que esta conciliação somente funciona ao se dar entre as elites, eventualmente atritadas em torno de uma questão que só a elas respeita.
Ocorre-me ter faltado a leitura de Norberto Bobbio e da sua exemplar lição sobre o que ainda significa hoje ser de esquerda. Assim é quem está sempre incansavelmente a favor dos desvalidos da terra, estejam onde estiverem. Mas talvez a leitura das páginas do pensador italiano seja pedir demais ao povo mais ignorante do mundo, e quem tiver dúvidas a respeito consulte os índices de escolaridade mais rasteiros que se possa imaginar. •
Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Energúmeno demente’
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