Democracia impossível

O monstruoso desequilíbrio social fala por si

O Brasil de ontem... - Imagem: Kenji Honda/Estadão Conteúdo

Apoie Siga-nos no

Muitos são hoje os que falam em democracia e nela acreditam integralmente. De­vo confessar que em poucas situações eu acredito cegamente. No caso da forma de governo, sei que democracia não existe em um país infelicitado por um monstruoso desequilíbrio social. À democracia se referem amiúde de professores universitários até empresários das dependências do prédio assírio/babilonês da Fiesp, erguido na Avenida Paulista, artéria simbólica do poder da “locomotiva” do Brasil.

Segundo um estudo do Laboratório das Desigualdades Mundiais, integrante da Escola de Economia de Paris, encabeçada por Thomas Piketty, autor de O Capital no Século XXI, clama o texto: “A discrepância de renda no Brasil é marcada por níveis extremos há muito tempo”. A BBC News Brasil aponta a necessidade de uma reforma fiscal ambiciosa, para tornar o sistema tributário mais progressivo. As desigualdades patrimoniais conseguem ser maiores do que as de renda. Os 50% mais pobres dispõem de apenas 0,4% da riqueza nacional.

Inquietos, os meus botões voltam a atacar. Que democracia é esta, em que os donos da casa-grande o são também do próprio Brasil? Impassíveis, respondem os irredutíveis hipócritas: “Em vigília cívica contra as tentativas de ruptura, bradamos de forma uníssona: Estado Democrático de Direito, sempre!”

Às vésperas das eleições presidenciais, verifica-se que mulheres e pobres escolhem Lula. Nunca duvidei, desde os tempos do ensino primário, da superioridade intelectual feminina e da total impossibilidade de democracia no País, por obra do monstruoso desequilíbrio social.

…e o de hoje – Imagem: Renato Luiz Ferreira

Há quem, certo de prosseguir na rota justa, alega a presença de poderes da República com perfeita autonomia. Sim, a obra-prima da pantomima encenada por tais poderes foi o conluio para condenar Dilma Rousseff ao impeachment e Lula à prisão por quase dois anos. E seria esta uma façanha democrática? Hipócritas ou iludidos? Levados na conversa ou vítimas da credulidade do povo brasileiro, à falta de quem lhe abrisse os olhos para registrar os vexames e as dificuldades até aqui experimentadas.


Neste instante, o Largo São ­Francisco, sede da velha e sempre nova academia, comemora Goffredo da Silva ­Telles ­Júnior, entre outras coisas meu professor de Introdução à Ciência do Direito no primeiro ano da faculdade. Figura de grandes rompantes a liderar uma manifestação em meio aos ásperos tempos da ditadura, com direito a intervenção de diversos oradores diante da praça lotada. Estava lá e lembro de ter ouvido a conversa de duas assistentes, enquanto passava no rumo do palanque. Perguntava uma à outra: “É um desfile do ­beautiful people, não é mesmo”? E era, de privilegiados do Brasil desigual.

No caso do eleitorado feminino e dos mais pobres a favor de Lula, não alego quaisquer dúvidas. Parece-me jogo de cartas marcadas, compreensível porque esperado. Nem por isso se justifica a crença de Sir Winston ­Churchill: “Não é o sistema de governo perfeito, mas é o melhor de todos”. ­Churchill foi considerado, pelos ingleses, vencedor da Segunda Guerra Mundial. Quando esta terminou, nas eleições que se seguiram ganhou o trabalhista ­Clement ­Attlee. Coisas da democracia. Aqui é forma de governo intransitável e fica patética a atitude de quantos acreditam vivê-la e aproveitá-la.

De acordo com as estatísticas eleitorais, mulheres e pobres estão com Lula. No caso do eleitorado feminino e dos pobres a favor do ex-presidente não alego quaisquer dúvidas. Nunca os pobres do Brasil chegaram a passar pela vida tão apertados. Trinta por cento da população morre de fome, outros 30% esperam por esta vicissitude a mais, enquanto as calçadas tornaram-se a cama de tanta gente infeliz, às vezes sem se dar conta da sua infelicidade.

Não esqueçamos o apoio oferecido de graça a esta minha certeza: a transformação das Forças Armadas em um poder infinitamente superior, decisivo em tantas ocasiões, e confirmado agressivamente como ocorre com o ex-capitão e o bolsonarismo. Eis a prova definitiva desde o golpe contra a monarquia, a instalar a república pelas mãos de um general. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1219 DE CARTACAPITAL, EM 3 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Democracia impossível”

Para proteger e incentivar discussões produtivas, os comentários são exclusivos para assinantes de CartaCapital.

Já é assinante? Faça login
ASSINE CARTACAPITAL Seja assinante! Aproveite conteúdos exclusivos e tenha acesso total ao site.
Os comentários não representam a opinião da revista. A responsabilidade é do autor da mensagem.

2 comentários

José Carlos Gama 2 de agosto de 2022 15h37
Democracia combina com hipocrisia. É um meio pelo qual matem-se o pobre na pobreza e o rico na riqueza sob o julgo do capitalismo.
PAULO SERGIO CORDEIRO SANTOS 30 de julho de 2022 04h21
Não se trata de ódio ou de luta de classes, mas de constatação. Quando vi o abaixo assinado com o nome de banqueiros e de altos empresários a favor da democracia em grupo de WhatsApp, só assinei por assinar, mas senti uma certa hipocrisia e repulsa em estar na companhia dessa gente. A chamada “democracia” que eles conhecem é somente a do lucro fácil, coisa que Bolsonaro com suas políticas econômicas fez minguar. Eles sabem que se os militares se arvorarem a dar golpe, seus ricos patrimônios diminuirão mais ainda. Nenhum investidor estrangeiro ou mesmo daqui se aventurará a por o seu dinheiro numa republiqueta que se deixa cair num golpe de milicos despreparados com um governante insano, eis que mergulhará o país numa crise mais profunda ainda. De fato as mulheres e os pobres desse país querem ver Lula de novo na presidência para poder ter um pouco mais de dignidade, comer melhor e poderem sair da miséria que se agravou depois do golpe e muito mais com esse governo Bolsonaro. Para a maioria do povo brasileiro democracia é um termo abstrato falado pelos que detém os meios de produção e ditadura é uma forma de criticar o Estado quando lhes faz pagar mais impostos para dar a cada um o que é seu e se fazer justiça social a tratar os desiguais desigualmente na medida de suas desigualdades aplicando a isonomia para se chegar numa verdadeira democracia. Não se deve somente defender o direito à vida e á liberdade, mas também à saúde, à educação, ao trabalho. A democracia não deve ser apenas política, mas política e social. Devemos entender que Bolsonaro atrapalha a “democracia” dessas elites que estão preocupadas em aparentar o seu discurso “civilizado”, o problema é quando Lula assumir e permitindo que os excluídos do poder de consumo, possam exercer sua cidadania e cobrar do Estado os seus direitos sociais negados por essas mesmas elites.

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.