Editorial
Cruzada cômica
Bolsonaro aposta nos evangélicos com determinação igual à de Barbarossa no caminho do Santo Sepulcro


Pergunto aos meus solertes botões se Pedro, o Eremita, arauto da primeira Cruzada, já chegou incógnito ou ainda espera para contar ao cabo com o espaço devido. De todo modo, estamos no Brasil às vésperas da nona Cruzada, com a diferença de cerca de um milênio entre a oitava e a atual. Ao longo do caminho teremos de lamentar tardiamente o falecimento de Frederico Barbarossa, afogado em um rio traidor a caminho de Jerusalém, tragado pelas águas devido ao peso da armadura teimosamente envergada em qualquer circunstância.
Consta que Barbarossa não perdia a oportunidade de se cobrir de ferro a desafiar o destino. De certos ângulos, Bolsonaro lembra o imperador ao menos na determinação granítica de conquistar as eleições presidenciais de outubro próximo em lugar do Santo Sepulcro. Não lhe falta empenho igual ao do poderoso senhor capaz de mandar no Sagrado Romano Império. A tática do energúmeno demente é, porém, outra, de sorte a convocar os gentios evangelistas a engajar-se na luta.
“Convenhamos, o povo brasileiro oferece a mais aprumada bucha de canhão”, observam prontamente os botões, entre jocosos e irônicos. De fato, nada igual existe no mundo à fé dos nativos, embevecidos de olhos mortos na hora de erguer as suas preces, em coros uníssonos, a deixar com inveja incurável correligionários de outras paragens. Milhares de pagadores de dízimo ajoelham-se então, tomados em transe pelo rito, e entoam suas orações que o energúmeno demente acredita soarem a seu favor.
O conjunto da obra propicia um clima hierático de intensa emoção, sem similar mesmo em Milwaukee. Esta ameaça não altera a tranquilidade de Lula: continua a crescer nas pesquisas e reúne condições de ganhar no primeiro turno. Além do mais, não acredita que o Altíssimo pretenda oferecer sua proteção a Bolsonaro neste confronto entre o Bem e o Mal. A situação é francamente patética, mas são poucos os que a encaram desta maneira. Patética e cômica, dada a evidência do papel de cada qual. Nem por isso o maior problema a afligir o povo brasileiro é o espantoso desequilíbrio social, um punhado de ricos e milhões de pobres.
Estas personagens não se parecem – Imagem: Marcos Corrêa/PR e iStockphoto
Maldição a agir impávida desde o tempo de casa-grande e senzala. Bastam passeios cariocas, ou paulistas, para meditar em torno da disparidade entre a morada de Scarlett O’Hara e as palafitas do Recife, ou o triste resultado colhido a olhar o panorama da Mangueira de baixo para cima. O cenário desta maneira não vai agradar. Eis a questão, entrave fatal à prática da tal democracia, da qual todos falam sem praticá-la, a despeito da boa-fé de alguns cidadãos abençoados.
Neste momento, a vitória de Lula em outubro próximo vai resolver a questão prioritária. Contudo, o mal do País, até hoje incurável, aí está como prepotente estribilho de um entrecho inacabado, sem chance à vista de chegar ao fim. Tal o andar da carruagem, incerta a respeito do comportamento correto e eficaz das rodas. Para celebrar a posse de Alexandre de Moraes na presidência do Tribunal Superior Eleitoral, todos estavam a postos, de Lula a Bolsonaro, ouvintes da promessa de eleições em plena e total segurança.
Apesar do tom dos meus botões ao se manifestarem a respeito dos sentimentos da grei evangélica, cabe perguntar se esta turba tem vontade de briga. A resposta é fácil: estes pagadores de dízimo não são de enfrentar quem quer que seja. São naturalmente de paz, este é desígnio do próprio Altíssimo aceito com fervor. Ou por outra: não servem para a cruzada bolsonarista, e qualquer mais.
Às vezes, a confiança em falsos profetas e líderes de tertúlias místicas leva os crentes a cometer desatinos, no cumprimento da orientação recebida. Convém lembrar o exemplo de Jim Jones, que arrastou o pessoal até o suicídio coletivo. A aposta de Bolsonaro é realmente digna do demente que diz nos governar.
E a prioridade continua a nos iluminar. Temos de nos livrar com urgência da presença desta figura espantosa e ignóbil, única no mundo atual a ofender a razão tão duramente. Houvesse a necessidade de uma cruzada para o exorcismo definitivo, nos encaminharia para outubro próximo, no momento em que a questão será resolvida, pelo menos no que respeita à penosa presença à testa do País desta lamentável personagem.
De outras coisas o Brasil precisa com urgência e aí, como diria Danny Kaye na interpretação do Inspetor Geral da peça de Gogol, “veremos o que veremos”. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Cruzada cômica”
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