Editorial
A guerra insana
Joe Biden pretende que o opressor se torne oprimido


Extraio de uma gaveta que se confunde com a minha memória de jornalista de longuíssimo curso imagens que se prestam a contar histórias variadas, a começar pelas atuais. A reportagem de capa desta edição – assinada pelo excelente André Barrocal – conta das mazelas do neto de Roberto Campos, à época dele também conhecido como Bob Fields. Além de servir aos interesses dos Estados Unidos e da ditadura, ele cultivava uma pretensa vocação de Dom Juan, conquistador indestrutível de qualquer fêmea, disponível ou não.
Roberto Campos visitava amiúde os Civita da Editora Abril, quando eu dirigia a revista Veja, e aos donos da casa recomendava que se livrassem do acima assinado. A dama favorita de Bob na época, certa vez, me ofereceu um relato das façanhas do senhor ministro, mas eu recusei, embora não deixasse de anotar tudo aquilo que ela me dizia. A imagem convocada para ilustrar aquele momento mostra-me entre Campos e Delfim Netto, em um almoço no restaurante instalado no último andar do prédio da Abril, na Marginal Tietê, em São Paulo.
… por esta devastação – Imagem: Mahmud Hams/AFP
Recomendo observar o terno italiano de seda envergado pelo nosso herói. Não sei até que ponto valeria a pena dizer tal avô tal neto, mesmo porque atuam em áreas distintas. Mas a personagem do enredo que o mundo vive neste exato instante é, indiscutivelmente, Joe Biden, o presidente dos Estados Unidos que tanto se orgulha do seu país e do cargo que exerce. A bem da sacrossanta verdade, não representa a potência ilibada que deveríamos admirar. Durante a chamada Guerra Fria, apresentava-se como a luz a enfrentar as trevas representadas pela União Soviética.
Era treva geral, pois nem uma potência nem a outra arcava com o papel pretendido. Ambas significavam o imperialismo praticado de formas diferentes, mas sempre malignas. Nunca deixaram de haver motivos para que o Brasil desconfiasse das intenções do “grande irmão do Norte”, conforme os editoriais da dita grande imprensa nativa, embora eu a encarasse como mínima, a pior do mundo. Mesmo em tempos recentes, Tio Sam remeteu a sua frota até as costas brasileiras para garantir, se preciso fosse, o golpe de 1964, sem contar Dan Mitrione, espião da CIA, a desempenhar o papel de vigilante dos movimentos centro e sul-americanos.
Quando Dilma Rousseff assumiu a Presidência, teve de se empenhar para que Washington não conseguisse impor à Petrobras a presença das sete fatídicas irmãs. Mas, em 2003, Lula empossado pela primeira vez, Barack Obama disse ao encontrá-lo: “Eis aqui o cara”. Logo, entretanto, o seu Departamento de Estado cuidou de abastecer com informações evidente e pretensamente negativas a respeito do próprio “cara”. Foi então deflagrada a Lava Jato, que chegou a prender Lula para aprisioná-lo na própria sede da Polícia Federal em Curitiba.
Antiga conversa quando Roberto Campos era Bob Fields – Imagem: Arquivo pessoal
Uma foto aparece nestas páginas para evocar o dia da prisão, ainda à espera no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, quando Celso Amorim e o acima assinado ladearam Lula, fotografados não por acaso pela fidelíssima secretária Cláudia, enquanto a polícia esperava aos pés da ladeira que deságua na avenida principal, onde seus agentes se amoitavam. Naquele momento, foi então selada uma grande e indestrutível amizade entre os dois visitantes, relação que até hoje dá frutos na impecável assessoria daquele que já foi chanceler e hoje é o conselheiro especial do presidente da República.
Importante a definição da política de grande resguardo em relação aos planos de Netanyahu, graniticamente convencido da condição de Israel como país eleito por Deus para todo o sempre. Verifica-se, contudo, que o Holocausto, decantado em prosa e verso, nada ensinou a Israel de Netanyahu, pronto a enfrentar com força total a justa rebeldia dos palestinos rechaçados para a Faixa de Gaza, bombardeados e talvez invadidos a curto prazo, privados de água e eletricidade e, portanto, de operar hospitais, onde já morreram 4 mil crianças, mulheres e idosos.
O balanço desta operação desumana aponta que o total de mortos já passa de 7 mil e, vistas as condições atuais, ameaça crescer exponencialmente. Biden, no entanto, acha que assim há de ser, já que na sua opinião soberana os repressores tornam-se oprimidos, em uma singular troca de papéis. Seria possível acabar com esta guerra, a despeito do empenho de países como o Brasil a favor da paz? A fúria do agressor que se reputa agredido, com o aval do presidente americano, de olhos voltados para o vácuo de Torricelli, o ponto de interrogação soa como definitivo.
Esta conversa em torno de Lula gerou uma amizade indestrutível – Imagem: Arquivo pessoal
Biden, protagonista medíocre de um entrecho sem nexo, rejeita toda e qualquer solução, em primeiro lugar aquela sugerida pela diplomacia brasileira, e promove o conflito insano. Não seria esta uma demonstração da pontualidade do tropel dos cavaleiros do Apocalipse, a encarnarem desgraças que medeiam entre fome, fogo, guerra e pestilência?
Insisto, sou jornalista de longa data. Dúvidas há em relação à do meu nascimento, de todo modo ocorrido em Gênova, cidade de Cristóvão Colombo. Exageradas, exorbitantes décadas de jornalismo aprendido com meu pai. Tempos duros de um trabalho que acabava entre duas e três da manhã. Ao encerrá-lo, ele concluía a jornada com a frase: “Mais uma batalha perdida”. •
Publicado na edição n° 1283 de CartaCapital, em 01 de novembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A guerra insana’
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