CartaCapital
Dois lados do balcão
A Comissão de Ética do governo é instada a apurar se Campos Neto detém um fundo com aplicações em títulos públicos


O governo luta no Congresso para aprovar a cobrança de Imposto de Renda sobre os lucros de fundos exclusivos e de empresas sediadas no exterior, geralmente em paraísos fiscais, as chamadas offshores, mas esbarra nas resistências de sempre. Compreende-se: os negócios na mira são coisas de milionários. A equipe econômica estima que os fundos e as offshores guardem 1,5 trilhão de reais em nome de 62 mil brasileiros, média de 24 milhões de reais por titular. Entre esses abonados está o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.
O economista carioca de 54 anos construiu uma sólida carreira de financista antes de chegar ao BC pelas mãos de Jair Bolsonaro, em 2019. Havia trabalhado na década de 1990 no banco Bozano Simonsen, depois juntou-se à equipe do espanhol Santander por 17 anos, em dois períodos diferentes (de 2000 a 2003 e de 2006 a 2018), conforme o currículo enviado ao Senado à época de sua indicação para o cargo. A papelada informava ainda que Campos Neto possuía quatro offshores: Peacock Asset, COR Asset, ROCN e Darling Corp. Todas em paraísos fiscais. A primeira, nas Bahamas, as demais, nas Ilhas Virgens.
No site da CVM, a “xerife” do mercado financeiro e de capitais, é possível ver as características e os negócios do fundo exclusivo de 30 milhões de reais que seria de Campos Neto. O investimento em títulos públicos tem potencial para configurar conflito de interesses
Em outubro de 2021, no escândalo dos Pandora Papers, um consórcio internacional de mídia revelou o nome de figurões detentores de negócios em paraísos fiscais. Campos Neto despontou em cena, graças à COR Asset. Havia constituído a firma em 2004, com 1 milhão de dólares. Diz tê-la fechado em agosto de 2020. Por 15 meses, tinha sido presidente do BC e ao mesmo tempo investidor offshore. Resumo da ópera: escapava de imposto no Brasil e podia aferir ganhos extras na hipótese de o dólar encarecer diante do real. O BC, registre-se, influencia o preço da moeda brasileira. Em decorrência do escândalo internacional, a Comissão de Ética Pública, órgão da Presidência da República, abriu uma investigação sobre o banqueiro. Um processo do tipo “ético”, que examina a conduta de um funcionário federal. Seu número é 00191.000622/2021-71.
A comissão faz reuniões mensais e o processo foi colocado na pauta do encontro de 29 de junho deste ano. Pela primeira vez desde a sua abertura, o recurso entrou na fila de julgamentos. O relator de então era Francisco Bruno Neto, advogado e professor nomeado por Bolsonaro em 2020, cujo mandato de três anos terminou. O atual é Bruno Espiñeira Lemos, procurador do estado da Bahia, também advogado e ex-defensor do petista Jaques Wagner, líder do governo no Senado. Lemos assumiu um posto na comissão em fevereiro, nomeado por Lula.
Lemos assumiu a relatoria na Comissão de Ética. Haddad faz o meio de campo entre o presidente Lula e Campos Neto – Imagem: Gabinete Especial/PR e Marcelo Camargo/ABR
Sem ter sido julgado em junho, o processo voltou à pauta da Comissão de Ética em julho, depois foi listado entre os temas de uma reunião extraordinária de 5 setembro e pautado de novo para a reunião rotineira daquele mês (dia 27). Nesta última oportunidade, uma ordem judicial impediu qualquer deliberação. Campos Neto havia recorrido à 16a Vara Federal de Brasília e conseguido uma liminar, em uma ação que corre sob sigilo. Em 23 de outubro, a Advocacia-Geral da União foi ao Tribunal Regional da 1a Região para tentar derrubá-la. O recurso aguarda um pronunciamento do desembargador Morais da Rocha.
Questionados quatro vezes por CartaCapital, os advogados Ticiano Figueiredo e Pedro Ivo Veloso, defensores de Campos Neto, não confirmaram a existência da ação nem explicaram os argumentos que a embasaram. É possível conferir, no site da Comissão de Ética, que o processo foi “suspenso por decisão judicial em relação ao impetrante ROCN”. São as iniciais do nome completo do banqueiro: Roberto de Oliveira Campos Neto. “Toda a gestão de seus investimentos, desde que assumiu o Banco Central, foi terceirizada, justamente como forma de demonstrar sua lisura, boa-fé, compromisso com a ética pública, bem como evitar qualquer tipo de conflito de interesses, conforme já informado, em mais de uma oportunidade, à Comissão de Ética”, responderam por escrito os advogados. “Aliás, tais fatos já foram analisados, mais de uma vez, pelo MPF, que jamais constatou ilícito ou irregularidade. Portanto, é um assunto que já foi esclarecido, cuja licitude foi reafirmada pelas autoridades competentes.”
O deputado Lindbergh Farias quer saber se o fundo é ou não do presidente do BC – Imagem: Zeca Ribeiro/Ag. Câmara
Se tudo está esclarecido e o banqueiro agiu sempre conforme a lei, qual a razão para recorrer à Justiça e impedir a análise da Comissão de Ética? CartaCapital fez esta pergunta aos advogados e não obteve resposta. O chefe do Ministério Público Federal em 2021, Augusto Aras, havia instaurado uma averiguação preliminar sobre Campos Neto após os Pandora Papers, mas logo arquivou o caso. A exemplo de Campos Neto no BC, Aras fora indicado por Bolsonaro para a Procuradoria-Geral da República. Na eleição do ano passado, o economista foi votar vestido com uma camisa amarela da Seleção Brasileira de futebol, traje típico do bolsonarismo. No início de 2023, com Lula no poder, ainda integrava um grupo de WhatsApp intitulado “ministros Bolsonaro”.
Integrante da Comissão de Ética de 2012 a 2018 e seu ex-presidente, o advogado Mauro Menezes diz haver um protocolo internacional sobre os procedimentos adequados a autoridades da área econômica que, no momento da posse, tenham negócios particulares. A autoridade precisa nomear alguém para cuidar desses negócios, um blind trust, e comprometer-se a não se envolver na gestão, a não se comunicar com o gestor, nem dar informações a ele. “A pessoa não pode ser obrigada a se desfazer dos negócios, mas também não pode interferir neles”, afirma Menezes. É o que os advogados de Campos Neto sustentam ter ocorrido no caso das offshores. “Se houver uma prova de que a autoridade orientou os investimentos ou a administração desses negócios, aí teríamos um problema”, prossegue Menezes.
O presidente do BC conseguiu uma liminar na Justiça para impedir a Comissão
de Ética de examinar, em setembro, um processo contra ele. No site da Comissão, ele é identificado como ROCN, as iniciais de seu nome completo, Roberto de Oliveira Campos Neto
A dor de cabeça de Campos Neto por estes dias não se limita às offshores. Há também um “fundo exclusivo”. Em 27 de setembro, mesmo dia em que foi proibida pela Justiça de julgar o processo sobre o banqueiro, a Comissão de Ética recebeu um pedido para investigá-lo por conflito de interesses. Desde 2001, o Código de Conduta da Alta Administração Federal veda a participação de uma autoridade em “investimento em bens cujo valor ou cotação possa ser afetado por decisão ou política governamental a respeito da qual a autoridade pública tenha informações privilegiadas, em razão do cargo ou função”. Quem viola o código, diz o artigo 17, está sujeito a uma advertência da Comissão de Ética. Mais: a comissão pode sugerir ao presidente da República a demissão do funcionário. Uma situação que, na hipótese de chegar a tal ponto no caso de Campos Neto, terminaria nos tribunais. Motivo: a Lei de Autonomia do BC, de 2021.
O pedido feito à comissão sobre conflito de interesses partiu do deputado Lindbergh Farias, do PT do Rio de Janeiro, crítico contumaz do juro alto praticado pelo Banco Central. O parlamentar cita no documento um certo “fundo exclusivo”. Esse tipo de fundo costuma cuidar do patrimônio de um indivíduo ou de uma família. Aquele mencionado pelo deputado tem realizado investimentos afetados por decisões do BC. Sua existência constaria das informações que o próprio Campos Neto prestou à Comissão de Ética ao entrar no cargo atual. Integrantes dos altos escalações governamentais precisam informar à comissão sobre empresas e investimentos que possuam, além de preencher uma Declaração de Conflito de Interesses. São regras destinadas a prevenir que motivações privadas influenciem o rumo de políticas públicas.
O BC independente mantém os juros acima dos 12% ao ano – Imagem: Jonas Pereira/Ag. Senado
O fundo exclusivo atribuído a Campos Neto tem o CNPJ 30.077.624/0001-78. Foi registrado no mesmo dia, 10 de janeiro de 2018, na Comissão de Valores Mobiliários, a “xerife” do mercado financeiro, e na Receita Federal. É possível ver suas características e seu histórico de investimentos no site da CVM. Possui um único cotista, pessoa física e detentor de 100% do patrimônio desde o início. É mantido e gerido pelo Santander, a instituição que empregou Campos Neto por quase duas décadas e que, hoje, está entre umas das poucas escolhidas pelo BC para planejar a criação de uma “moeda digital” brasileira.
Os investimentos do fundo exclusivo mantido no banco espanhol começaram em 29 de janeiro de 2019, um mês antes de Campos Neto assumir o BC. O montante guardado somava 12,5 milhões de reais na ocasião. Agora em outubro, chega a 30,5 milhões, crescimento de 144% em pouco menos de cinco anos. Em cifras, o aumento foi de 18 milhões de reais, média mensal de 315 mil. O salário do presidente do BC é de 18,8 mil. De início, o fundo aplicava quase tudo em cotas de fundos de renda fixa do Santander. Hoje, sua carteira está diversificada. Dos 30,5 milhões de reais, 17,7 milhões (58%) estão em cotas de outros fundos, 4,4 milhões (14%) em ações e 7,9 milhões (25%), em títulos públicos.
Título público é um papel que o governo vende no mercado financeiro em troca do compromisso de devolver o dinheiro lá na frente ao comprador e de pagar um adicional sobre o valor original do título. Assim a turma da Avenida Faria Lima se esbalda sem fazer força: “empresta” ao Poder Público em troca de juro alto. Uma das referências usadas para remunerar um comprador de título público é a taxa básica do Banco Central. O porcentual da Selic é revisto a cada 45 dias pelo Comitê de Política Monetária, grupo formado pelo presidente e os oito diretores do BC. De sua entrada no banco até outubro de 2023, Campos Neto participou de 37 reuniões do Copom. A Selic estava em 6,5% quando de sua estreia no comitê e paira nos 12,75% desde 21 de setembro.
Ao participar de uma audiência na Câmara, Campos Neto recusou-se a responder se é ou não titular do fundo
Em agosto de 2020, o fundo exclusivo em questão investiu 5 milhões de reais em Letras Financeiras do Tesouro, títulos indexados à Selic. Essas LFTs tinham sido emitidas pelo Tesouro Nacional cinco meses antes, em 13 de março de 2020, com vencimento em 1o de setembro de 2026, data em que o governo promete pagar o detentor do papel. A aplicação nas LFTs correspondia a 20% do patrimônio do fundo à época. A Selic estava em 2%, a menor já registrada. Eram tempos de pandemia e de economia devagar, quase parando. Dois meses depois, o fundo vendeu a terceiros cerca de metade das LFTs. A Selic ainda era de 2%. Em tese, uma transação sem ganho extra além dos 2% de juros. Título ligado à Selic tem rendimento diário no montante equivalente à fatia diária da taxa. Em julho de 2021, o fundo vendeu mais 495 mil reais daquelas LFTs, quando a Selic estava em 4,25%. No mês seguinte, alienou mais 810 mil, com taxa a 5,25%. Em junho do ano passado, vendeu mais 1,2 milhão de reais, com o juro a 12,75%. Agora em outubro, há 332 mil reais de LFTs no fundo exclusivo.
No dia do pedido de análise do fundo pela Comissão de Ética, Campos Neto havia sido questionado no Congresso sobre a posse de um fundo exclusivo e fugira do assunto. O presidente do BC participava de uma audiência pública na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados e tinha sido inquirido por Lindberghh Farias: “O senhor tem fundo exclusivo?” Para o petista pode até ser “legal”, mas é “imoral” o chefe do Banco Central “colocar dinheiro em offshore e fundo exclusivo para não pagar imposto”. “Nesse fundo exclusivo, tem investimento em Tesouro Direto, em títulos do Tesouro? Ele é remunerado pela Selic ou pelo IPCA?”, prosseguiu o deputado. Campos Neto comentou que era a favor de cobrar Imposto de Renda de offshore e fundo exclusivo. E só. “O senhor não me respondeu se tem um fundo exclusivo. Se esse fundo exclusivo tem remuneração de taxa Selic ou de IPCA (…) É grave se a remuneração foi taxa Selic ou IPCA”, replicou o parlamentar.
Pedro Paulo, do PSD do Rio, deputado-relator da lei da taxação de offshores e fundos exclusivos, saiu em socorro do banqueiro: “A pergunta vai ao encontro do sigilo fiscal do presidente do Banco Central (…) Ele não está nessa audiência aqui obrigado a responder sobre aplicações que ele tem na pessoa física dele”. Guilherme Boulos, do PSOL paulista, uniu-se a Farias: “Pelo bem da transparência, se ele não tem nada a dever, seria muito interessante que respondesse”. Campos Neto declarou estar ali para debater economia e não respondeu sobre o fundo exclusivo. Falou apenas de offshores: que as tem há 15, 20 anos e que não movimentou esse dinheiro no exterior, pois terceirizou a gestão. “Mas o senhor tem ou não tem fundo exclusivo?”, insistiu Farias. Novo silêncio do banqueiro. A audiência pública terminou com a dúvida no ar.
O ex-ministro Paulo Guedes também esconde informações – Imagem: Marcelo Camargo/ABR
No pedido dirigido à Comissão de Ética após o debate, o deputado petista afirma que nenhum questionamento havia sido “satisfatoriamente respondido (pelo presidente do BC) de modo a afastar qualquer suspeita de violação do Código de Conduta da Alta Administração Federal”. CartaCapital perguntou aos advogados de Campos Neto sobre fundo exclusivo, outros fundos que possa ter o economista e eventuais conflitos de interesse. “Não há qualquer relação entre a atuação do presidente do Banco Central e seus investimentos. Todas as mudanças na taxa Selic foram adotadas de forma colegiada, técnica, e com o objetivo de controlar o crescimento da inflação”, responderam por escrito.
O “fundo exclusivo” pode custar a Campos Neto um terceiro processo na Comissão de Ética. O caso Pandora Papers gerou não um, mas dois. Além daquele “ético”, há um destinado a examinar a Declaração de Conflito de Interesses que o presidente do BC havia apresentado ao entrar no governo. O objetivo é conferir se ele havia prestado informações suficientes sobre suas offshores e sobre como lidaria com suas aplicações privadas enquanto ocupasse um cargo público. O processo, de número 00191.000706/2021-71, esteve na pauta da comissão em agosto e setembro. Nesta última, um pedido de vistas de Bruno Lemos adiou uma decisão. O relator do caso é Edvaldo Nilo de Almeida, advogado nomeado no ano passado por Bolsonaro. Paulo Guedes, ex-ministro da Economia, figura nos mesmos dois processos oriundos do escândalo de 2021. Ele tinha uma offshore, a Dreadnoughts, nas Ilhas Virgens, aberta com 8 milhões de dólares em 2014. Seus advogados são os mesmos de Campos Neto e conseguiram igualmente uma liminar judicial para barrar o exame de um dos casos pela comissão.
O andamento de seus processos, sua presença pela manhã no Congresso em 27 de setembro, o posterior pedido de Lindbergh Farias para a Comissão de Ética investigá-lo e a reunião da comissão à tarde compunham o pano de fundo de uma conversa que Campos Neto teria com Lula no Palácio do Planalto na noite daquela mesma data. Foi o primeiro encontro frente a frente entre eles no atual governo. Durou das 18h30 às 19h50. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, participou e declarou a jornalistas que o tête-à-tête versou sobre temas gerais, “de construção de relação, de pactuação em torno de conversas periódicas” entre o presidente e o banqueiro. Na volta ao Planalto, Lula não poupou críticas a Campos Neto por causa dos juros. Chamava-o não pelo nome ou pelo cargo, mas de “cidadão”. A Selic começou a ser reduzida pelo Copom em 2 de agosto. O voto do comandante da instituição foi decisivo no placar de 5 a 4. •
Publicado na edição n° 1283 de CartaCapital, em 01 de novembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dois lados do balcão’
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