Editorial

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A corporação atiçada

Enquanto a transição procura escolher um civil para a pasta da defesa, os militares fazem questão de lembrar seu passado de exército de ocupação

Dois entre os ministros que serviram a contento durante os governos de Lula: Nelson Jobim e Waldir Pires - Imagem: Marcello Casal Jr./ABR e Celso Júnior/Estadão Conteúdo
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Só podemos atribuir aos fados da antiga Grécia a cilada histórica a que assistimos neste momento. De um lado, a ameaça latente de uma intervenção militar, a lembrar os golpes de Estado que já sofremos desde a Proclamação da República. Do outro, a presença de uma seleção brasileira de futebol no campeo­nato mundial em andamento no Catar. Os fados mandavam no destino, auxiliados por três parcas: Cloto tecia o fio da vida de cada homem, Láquesis determinava o comprimento do fio, Átropos cortava o fio da vida. Outra auxiliar havia e chamava-se Fortuna, a sorte, tinha olhos vendados, em uma mão segurava um limão, símbolo do acaso. O destino era entendido na Grécia antiga como uma força cósmica superior à vontade dos deuses e dos homens. Quem ousasse se sobrepor aos desígnios dos fados precipitaria o mundo no caos inicial.

Os lugares-comuns que o País se vê obrigado a frequentar em perfeita concomitância, a ameaça de um golpe militar e o campeonato mundial de futebol não poderiam esconder a intervenção superior dos fados. A primeira personagem que comparece no palco desta encenação é o general Paulo Sérgio Nogueira, ministro da Defesa de Jair Bolsonaro, que publica a seguinte nota: “O acurado trabalho da equipe de técnicos militares na fiscalização do sistema de votação, embora não tenha apontado, também não excluiu a possibilidade da existência de fraudes ou inconsistências nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022”.

No Lago Sul de Brasília, uma casa alugada para sediar o comitê de campanha de Bolsonaro tornou-se uma espécie de central para ações golpistas e ali se reúnem, liderados pelo general Walter Braga Netto, fardados a discutir estratégias para questionar o resultado das urnas. Ex-ministro e candidato a vice do ex-capitão no recente pleito, Braga Netto passa recados aos companheiros: “Não percam a fé, é só o que eu posso falar agora”. Enquanto, na terça-feira 15, o general da reserva Eduardo Villas Bôas dá seu apoio aos manifestantes bolsonaristas. No ­Twitter, escreveu: “Com incrível persistência, mas com ânimo absolutamente pacífico, pessoas de todas as idades, identificadas com o verde e o amarelo que orgulhosamente ostentam, protestam contra os atentados à democracia, a independência dos Poderes, ameaças à liberdade e as dúvidas sobre o processo eleitoral”. Villas Bôas é um ­expert inegável na hora de ameaçar golpes. Quando comandante das Forças Armadas, usou as redes sociais para pressionar o STF às vésperas da votação de um habeas corpus a favor de Lula.

Na pasta da defesa saiu-se muito bem Celso Amorim, já notabilizado como chanceler

Neste momento, a transição comandada pelo vice-presidente Geraldo Alckmin busca o nome do futuro ministro da Defesa, que há de ser um civil. De início cogitava-se de alguém que já ocupou o posto, Nelson Jobim, mas ele prefere ficar onde está, cidadão livre de compromissos políticos. A busca prossegue e a caserna cuida de recordar a sua constante presença na história do Brasil, desde a fundação da República.

Não há exércitos de ocupação em países civilizados e democráticos, onde se destinam a defender as fronteiras. O Brasil, pelo contrário, carrega tempo adentro esta sina a se multiplicar em golpes militares frequentes. Na visão de observadores fidedignos, o golpe desfechado em várias ocasiões, sobretudo aquele de 1964, representa uma das grandes desgraças nacionais, juntamente com a colonização predatória e a escravidão.

Os fardados da ativa, e até alguns de pijama, tratam agora de lembrar a Lula o papel por eles exercido há mais de um século. A recusa de Jobim prova a importância da escolha, a qual prossegue sem indicações precisas quanto ao seu rumo. CartaCapital recorda, sobretudo, Waldir Pires, figura exemplar de cultura e cortesia, e da justa severidade nas ocasiões em que foi preciso usá-la. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1236 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A corporação atiçada”

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