Edição da Semana

Eduardo Paes rasga a fantasia de ecologista e libera o desmate

No Rio de Janeiro, mudanças no plano diretor permitem a derrubada de Mata Atlântica e a ocupação de áreas tombadas

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“Como é possível desmatar uma área tão importante para a regulação da temperatura do bairro sem consultar os moradores? O barulho das árvores caindo é ao mesmo tempo triste e assustador”, lamenta a representante de vendas Fernanda Dias, moradora da Tijuca, na Zona Norte do Rio de Janeiro, e vizinha de uma contestada obra autorizada pela prefeitura. A vegetação nativa de uma área de amortecimento do Parque Nacional que abriga dezenas de espécies da flora e fauna dará lugar a um condomínio residencial com 200 apartamentos em um terreno adquirido pelo Grupo Opportunity, que dispensa apresentações. O desmatamento só foi possível após o pedaço de terra, originalmente parte de uma região tombada por seu valor arquitetônico e urbanístico, ser desmembrado às pressas pelo Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Cultural. Moradores, ambientalistas e parlamentares criticam a decisão da prefeitura e denunciam um processo de revisão do plano diretor da cidade que trará prejuízos incontornáveis. A prefeitura rebate e afirma que os projetos têm o objetivo de revitalizar a economia de áreas hoje estagnadas e subaproveitadas.

O Movimento Baía Viva acionou o Ministério Público para tentar embargar o projeto na Tijuca. “A supressão das árvores foi autorizada de forma irresponsável, por meio de uma licença fraudulenta e ilegal, para favorecer os interesses da especulação imobiliária”, diz Sérgio Ricardo Potiguara, coordenador da entidade, que acusa Eduardo Paes de conivência. “O prefeito tem avançado com facilidade na revisão do plano diretor sem verdadeiramente ouvir o projeto participativo de cidade defendido há décadas pela sociedade civil e acadêmica.”

As críticas aumentaram depois da apresentação pela prefeitura, no início do mês, de um projeto de lei complementar que determina mudanças nos parâmetros de ocupação e construção em áreas hoje preservadas e restritas a residências unifamiliares. Se a lei for aprovada, casas antigas localizadas em pontos nos quais a Mata Atlântica se encontra com a porção urbana poderão ser desmembradas em unidades autônomas e dar lugar a prédios, condomínios e estabelecimentos comerciais. Segundo a Secretaria Municipal de Planejamento Urbano, mais de 12 mil imóveis estão nessa condição, a maioria concentrada entre a Tijuca, o Centro e a Zona Sul. Alguns são datados do século XIX e protegidos pelo patrimônio histórico. A nova lei permitirá ainda que imóveis localizados em Áreas de Proteção do Ambiente Cultural, as Apacs, abriguem estabelecimentos hoje proibidos, entre eles hotéis e restaurantes, o que afetaria bairros como Urca, Alto da Boa Vista, Santa Teresa e Cosme Velho.

Mudanças no plano diretor permitem a derrubada de Mata Atlântica e a ocupação de áreas tombadas

Segundo a presidente da Comissão de Assuntos Urbanos da Câmara dos Vereadores, Tainá de Paula, do PT, o tema não é tratado pela prefeitura com a devida profundidade. “É muito importante estudar de que forma podemos viabilizar economicamente as edificações preservadas sem descaracterizar o patrimônio histórico nem provocar impactos ambientais”, diz. “Foi desperdiçada a oportunidade de se fazer um debate mais qualificado sobre a reinserção desses imóveis e evitar que a flexibilização de parâmetros urbanísticos resulte em impactos que dificilmente poderão ser revertidos. E tudo isso sem a prefeitura apresentar estudos técnicos ou exigir análises de impacto de vizinhança.”

Em relação às áreas de proteção cultural, a vereadora teme consequências diversas. “O maior risco é possibilitar uma série de usos comerciais em imóveis de interesse de preservação, o que provocará um impacto tremendo nas redes de infraestrutura e trânsito.” A permissão de novas edificações, acrescenta, resultará em adensamento populacional, supressão de vegetação e descaracterização arquitetônica. “São prejuízos ao meio ambiente e ao patrimônio histórico”, resume.

Secretário municipal de Planejamento Urbano, Washington Fajardo defende a importância econômica do projeto: “Há muitas casas preservadas em áreas unifamiliares que não conseguem mais ter economia de utilização. São casas que têm 600, 800, mil metros quadrados e nas quais, pelo zoneamento, só pode morar uma família. Hoje em dia, ninguém mais mora em um imóvel desse tamanho e eles ficam sem possibilidade de utilização”. Uma nova lei, defende o secretário, favorecerá atividades econômicas de baixo impacto. “Basta uma olhada na internet para ver que em áreas residenciais há um monte de atividades econômicas. É estúdio de pilates, é produtora cultural… Vários profissionais liberais têm suas atividades em casas, só que essas ficam ilegais. É muito importante permitir algum grau de flexibilidade para atividades econômicas nesses bairros. Isso também reduz os deslocamentos em veículos, o que tem um impacto ambiental positivo.”

As críticas dos ambientalistas, prossegue Fajardo, são injustas. “Um dos aspectos dessa lei é o ecológico. Não à toa várias cidades criam estímulos para o retrofit, para a reforma, visando, inclusive, reduzir as emissões de gases de efeito estufa. As unidades de conservação ficarão intactas, e as áreas com proteção ambiental não serão alteradas.”

O avanço sobre os terrenos protegidos, dizem os críticos, é efeito da pressão crescente do setor privado. Flexibilizar o uso serviria para tirar do papel, entre outros, o Parque do Boticário, que se estenderia do Largo do Boticário, recanto bucólico do Cosme Velho, a Santa Teresa. O projeto prevê a construção de 40 residências tradicionais e 20 lofts no meio da mata, além do alongamento de ruas em uma Zona de Reserva Florestal. A prefeitura, diz o secretário, não tem nada a ver com a história. “Nem sei o que é isso.”

A tensão entre o Poder Público e os ambientalistas aumentou depois do anúncio de um pacote de ações “verdes” bancadas com parte do dinheiro que a cidade vai receber da privatização da Cedae, a companhia estadual de água e esgoto. Em meio a investimentos em educação e saúde, Paes incluiu a construção de “parques lineares” em bairros da Zona Oeste. Segundo o Conselho Municipal de Meio Ambiente, o projeto, ao custo de 300 milhões de reais, “combina técnicas de urbanismo e drenagem” e é destinado a proteger de invasões irregulares áreas inundáveis pelo Rio Cabuçu, além de “melhorar as condições ambientais” da combalida Baía de Sepetiba.

Para o Movimento Baía Viva, se quisesse de fato melhorar a situação da região, a prefeitura deveria apostar no saneamento. “O prefeito está em seu terceiro mandato e em nenhum deles investiu 1 centavo para tirar do papel o obrigatório Plano Municipal de Saneamento Básico. No primeiro governo, fez um acordo ilegal com o então governador Sérgio Cabral, que privatizou o setor na Zona Oeste. Mas os investimentos prometidos pelas empresas Odebrecht e Brookfield não aconteceram. É visível o sacrifício ambiental da Baía de Sepetiba pelos esgotos não tratados”, descreve Sérgio Potiguara.

Segundo a prefeitura, os projetos vão revitalizar regiões abandonadas da cidade

Outrora identificado com a causa ambiental, Paes, em 2013, chegou a presidir por três anos o C-40, grupo formado por grandes cidades do mundo para combater os efeitos do aquecimento global. Nesta sua terceira passagem pelo cargo, o prefeito, que recentemente trocou o DEM pelo PSD, opta, no entanto, por se distanciar da imagem de “ecologista” e não parece muito amigo da natureza. Uma de suas primeiras medidas foi esvaziar o programa Mutirão Reflorestamento, que utiliza mão de obra dos moradores das áreas de risco e possibilitou o replantio de 10 milhões de árvores em diversos pontos da cidade. “O histórico do Paes mostra que ele é muito bom na hora de falar de política ambiental, mas na hora de executar os marcos ambientais é muito ruim”, alfineta o biólogo e ativista socioambiental Pedro Aranha.

Integrante da Coalizão pelo Clima e ligado ao tema ambiental desde a Rio-92,­ Aranha diz não ter ilusões quanto ao desempenho ambiental do ex-presidente do C-40 nesta terceira passagem pelo Palácio da Cidade. “É mais um governo neoliberal que fala de políticas ambientais como maquiagem. Paes não traz a centralidade da questão para a política pública. Isso é muito ruim para uma cidade que em breve enfrentará diversos problemas de emergência climática.”

Polêmica. A ocupação comercial de prédios tombados ficou mais flexível

As recentes decisões do prefeito o colocam na contramão de compromissos assumidos em suas primeiras gestões. O mais importante é a Política Municipal de Mudanças Climáticas e Desenvolvimento Sustentável, aprovada em 2011. O compromisso assumido na ONU estabeleceu metas de redução de emissões de gases para os anos seguintes: até 8% em 2012, até 16% em 2016 e até 20% em 2020, em relação aos dados de 2005 registrados pelo Inventário de Emissões de GEE elaborado em parceria com a COPPE/UFRJ. A meta está longe de ser cumprida.

“A expectativa é quase nenhuma de que Paes vá cumprir a Política Municipal de Mudanças Climáticas”, afirma Aranha. “Até hoje o Fórum de Mudanças Climáticas continua sem sair do papel, sem se reunir, e o prefeito não toma decisão nenhuma a respeito. Ele assina os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, mas na prática a questão ambiental na prefeitura é uma falácia. A gente pode ver isso pelo atual ritmo de desmatamento da Mata Atlântica.”

Outro lado

“Não é verdade que o terreno da Rua Homem de Melo, 169, na Tijuca, adquirido pelo Opportunity Fundo de Investimento Imobiliário, seja área de amortecimento do Parque Nacional da Tijuca. Esta área já havia sido reflorestada, não havendo resquícios de Mata Atlântica. Também não é verdade que o terreno fazia parte de região tombada. Existe somente uma edificação tombada, que se localiza na área contígua ao terreno, uma área que pertence à Associação Evangélica Denominada Batista no Rio de Janeiro. Por fim, não é verdade que o Opportunity detenha “uma licença fraudulenta e ilegal”. O desmembramento da área e a venda de parte dela para o fundo cumpriu todos os prazos e exigências da legislação e o empreendimento conta com todas as licenças necessárias. A Biovert Florestal e Agrícola foi contratada para o trabalho de supressão vegetal no terreno e a execução da medida compensatória, prevendo o plantio de 2.805 mudas de árvores nativas da Mata Atlântica.”

Opportunity Fundo de Investimento Imobiliário

Publicado na edição nº 1176 de CartaCapital, em 23 de setembro de 2021.

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