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Uma moeda BRICS?

A decisão de criá-la poderia ser tomada na cúpula de 2025, sob a presidência brasileira

Não se trata de criar uma moeda única em substituição às cinco moedas nacionais, bastaria criar um banco emissor – Imagem: iStockphoto
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A possível criação de uma moeda pelos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) tem figurado com frequência na mídia internacional e nas declarações de alguns governantes de países do grupo, notadamente Putin e Lula. Por iniciativa da Rússia, a ideia está em discussão desde 2022, de modo ainda embrionário. O tema não foi lançado oficialmente, mas deve estar presente na cúpula dos líderes dos BRICS que ocorrerá na África do Sul no fim de agosto.

O pano de fundo dessa possível ­moeda dos BRICS é, como se sabe, a crescente disfuncionalidade do sistema monetário internacional que, desde a Segunda Guerra Mundial, gira em torno de uma moeda hegemônica – o dólar dos Estados Unidos. A contradição fundamental é o sistema internacional depender preponderantemente de uma moeda ­nacional, administrada de acordo com os interesses do Estado emissor.

Os EUA resistem ferozmente a qualquer tentativa de reduzir o papel internacional da sua moeda. Nunca permitiram, para mencionar apenas um exemplo, que o Direito Especial de Saque (DES), a moe­da criada no âmbito do FMI, crescesse e se consolidasse como moeda plena. Sempre recorreram a seu direito de veto na instituição, para impedir que o DES ameaçasse, mesmo remotamente, o dólar como moeda hegemônica.

O maior inimigo do dólar

Os problemas do sistema monetário internacional são arquiconhecidos. A novidade nos anos recentes é que os EUA vêm se valendo da sua moeda, de maneira cada vez mais agressiva, para buscar objetivos políticos e geopolíticos. Deu-se a militarização do dólar, isto é, o uso da moeda nacional-internacional e do sistema financeiro ocidental para atingir países hostis ou vistos como tal. O alvo mais recente foi a Rússia. Evidentemente, o uso e o abuso da posição privilegiada do dólar levam a uma perda de legitimidade do sistema monetário internacional vigente. Em uma frase: os Estados Unidos são hoje o principal inimigo do dólar como moeda mundial.

Criou-se, assim, um ambiente propício para voltar a considerar a reforma do sistema monetário e a desdolarização das transações internacionais. Foi nesse contexto que surgiram as discussões nos BRICS sobre a conveniência de caminhar na direção de uma associação monetária e eventualmente de uma moeda comum.

A militarização do dólar leva a uma perda de legitimidade do sistema monetário vigente

Possíveis caminhos para uma moeda BRICS

Uma curiosidade: os russos toparam com a seguinte coincidência feliz – as moedas dos cinco países dos BRICS começam todas com a letra “R” – real, rublo, rupia, renminbi e rand. Propuseram então que a nova moeda se denominasse R5.

O R5 começaria como unidade de conta, tomando a forma de uma cesta das cinco moedas, construída de forma análoga ao DES. As ponderações das cinco moedas refletiriam, grosso modo, o peso relativo das cinco economias. A moeda chinesa poderia, para dar um exemplo ilustrativo, ficar com 40% da cesta; a moe­da indiana, com 25%; as moedas russa e brasileira, com 15% cada; e a sul-africana, com 5%. Essa primeira etapa é relativamente simples e, havendo consenso entre os cinco países, poderia ser implementada de forma rápida e sem ­custos significativos.

No entanto, como se sabe, uma moeda propriamente dita tem de exercer não apenas as funções de unidade de conta, como também as de reserva de valor e meio de pagamento. Como assegurar que o R5 possa cumprir todas essas funções?

Ofereço, a título de contribuição para o debate, algumas observações preliminares. Não seria necessário, nem recomendável, criar um Banco Central dos BRICS, responsável pela condução da política monetária para os cinco países – algo impraticável por vários motivos. Em outras palavras, não se trata de criar uma moeda única que substituiria as cinco moedas nacionais. Bastaria criar um Banco Emissor, encarregado de emitir o R5 como moeda digital, de acordo com regras predeterminadas, sem interferir na atuação dos Bancos Centrais, que continuariam a desempenhar todas as suas funções habituais.

O lastro da nova moeda

Como assegurar a ampla aceitação do R5? Os russos mencionaram a alternativa de um lastro em ouro. Não funcionaria, a meu ver. Pode parecer uma opção atraente à primeira vista, mas é, na realidade, uma ideia regressiva – um retorno ao que Keynes chamava de “relíquia bárbara”.

Lastro, no sentido monetário, é um ativo sólido e confiável, que possa dar base para uma moeda alcançar ampla aceitação e circulação. Para que esse lastro tenha sentido real é necessário, a rigor, que a ­moeda lastreada seja livremente conversível no ativo-lastro a uma taxa de câmbio fixa.

Uma possibilidade seria tornar o R5 conversível em títulos garantidos pelos cinco países. O Banco Emissor de R5 ficaria encarregado também de emitir R5 bonds, títulos R5, com diferentes prazos e taxas de juro. O R5 seria livremente conversível em títulos R5. “Lastreada” em ativos criados pelo próprio Banco Emissor, o R5 seria, na verdade, uma moeda fiduciária, da mesma natureza que o dólar e as demais moedas de liquidez internacional. Os títulos R5 seriam a expressão financeira concreta da garantia que os cinco países dariam à nova moeda.

A circulação da nova moeda poderia começar entre os Bancos Centrais e se estender gradualmente a outras operações governamentais e transações com Bancos Centrais extra-BRICS. O Novo Banco de Desenvolvimento, a principal iniciativa concreta do grupo até agora, poderia desempenhar papel auxiliar. Por exemplo, apoiar estudos e discussões sobre a reforma do sistema internacional e a eventual criação do R5. Numa etapa mais avançada, ajudaria a colocar a nova moeda em circulação, realizando empréstimos e captações em R5.

A cúpula de 2023 e as seguintes

Para fazer avançar essa discussão complexa, seria interessante que os líderes dos BRICS, na cúpula que ocorrerá daqui a algumas semanas, pedissem a seus ministros de Finanças e a seus institutos de pesquisa que estudem de modo coordenado a questão e apresentem os resultados desse trabalho na cúpula que se ­realizará em 2024, na Rússia.

Não sei se a discussão avançou suficientemente e se há consenso entre os países em examinar o tema. Logo saberemos. Idealmente, os líderes dos BRICS dariam agora um primeiro sinal, de ordem geral, permitindo lançar um processo de avaliação do tema. Se tudo correr bem, na cúpula seguinte, em 2024, os BRICS tomariam a decisão de discutir formalmente a viabilidade de uma nova moeda. A decisão de criar o R5 poderia ser tomada na cúpula de 2025, sob a presidência brasileira. •

Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.

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