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Rumo ao Pacífico

Um pacote de obras de integração reforça o intercâmbio na América do Sul e a conexão com a Ásia

Missão. Lula deu a Tebet a tarefa de articular os investimentos – Imagem: Washington Costa/MPO
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Não faz parte do imaginário do Brasil, descoberto a partir do Atlântico e com mais da metade da população situada a até 150 quilômetros de distância da costa, uma saída marítima pelo Pacífico, mas empresários, executivos e técnicos do governo envolvidos nas áreas de logística, comércio e indústria só pensam nisso, desde que a geopolítica virou de cabeça para baixo, com o enorme peso adquirido pela China e outros países asiáticos na economia e na política globais.

O Plano de Integração Sul-Americana desenvolvido pelo governo Lula, que visa aumentar as trocas entre os países da América do Sul e contribuir para a dinamização da indústria local, inclui com destaque a ligação do Atlântico ao Pacífico. “A integração regional na América do Sul é uma necessidade e ela ganha novos contornos por conta desse redesenho do cenário político mundial. O aumento das trocas comerciais é importante porque aquece especialmente a indústria. As rotas de integração vão além, entretanto, da economia e da engenharia. São meios para estreitar também as relações culturais e turísticas”, sintetiza Simone Tebet, ministra do Planejamento e Orçamento.

O ministério traçou cinco rotas para compor o plano de integração (mapa à dir.) e as obras contam com financiamentos de 10 bilhões de dólares, dos quais 3,4 bilhões virão do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), 3 bilhões do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), 600 milhões do Fundo Financeiro para Desenvolvimento da Bacia do Prata (Fonplata) e 3 bilhões do ­BNDES. Os recursos da instituição de fomento brasileira financiarão 124 obras de prefeituras e governos estaduais incluídas no Programa de Aceleração do Crescimento. “É um dinheiro à disposição dos 11 estados de fronteira, Amapá, Pará, Roraima, Amazonas, Acre, Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, das ­suas prefeituras e de consórcios de municípios”, detalha João Villaverde, secretário de Articulação Institucional do ministério. Os recursos podem ser utilizados tanto para financiar pontes, hidrovias, aeroportos e portos quanto para estruturar projetos, condição para obter os financiamentos.

A economia de tempo e custos pelas novas vias impressiona. A Rota 4, de Capricórnio, que interliga os estados de Mato Grosso do Sul, Paraná e Santa Catarina com o Paraguai, a Argentina e a costa do Pacífico, no Chile, encurtará o trajeto do transporte da produção daqueles estados para a China, na comparação com o percurso dos embarques feitos no porto de Santos, em nada menos que 7 mil quilômetros. “Quando a Rota 1, das Guianas, estiver concluída, as Guianas não precisarão mais importar batatas do Canadá, poderão comprá-las no estado brasileiro fronteiriço de Roraima. Com a Rota 3 em funcionamento, o Brasil, que hoje adquire lítio, níquel e fertilizantes da Rússia e da China, poderá importá-los mais rápido e mais barato da Bolívia”, sublinha Tebet.

Na nova geografia econômica, o centro do continente é Cuiabá, a capital de estado brasileiro que apresenta o maior crescimento econômico nos últimos anos. Em valores nominais, o Mato Grosso exportou, no início do século, 1 bilhão de dólares. Em 2022, o valor nominal do comércio externo atingiu a marca de 30 bilhões de dólares. A projeção de 2023 é de cerca de 35 bilhões de dólares. Segundo o Censo de 2022, o estado tem 3,6 milhões de habitantes e apresenta exportações per ­capita de, aproximadamente, 10 mil dólares. “Essa média é superior àquela da China e a de diversos países economicamente relevantes. No entanto, o ­custo logístico enfrentado por Mato Grosso é elevado”, ressalta Pedro Silva Barros, técnico de planejamento e pesquisa e coordenador do projeto “Integração Regional: o Brasil e a América do Sul”, da Diretoria de Estudos Internacionais do Instituto de P­­­­­esquisa Econômica Aplicada.

Dinamismo. O porto peruano de Chankay encurta a distância para a China e o Leste Asiático – Imagem: Washington Costa/MPO

O porto mais estratégico no Pacífico é o de Chankay, no Peru, a 80 quilômetros de Lima, o maior investimento da China na América do Sul, importante para peruanos e brasileiros, como caminho de exportações e importações. “A partir de novembro, quando deverá estar concluí­do, vai transacionar, logo no início, 25% do volume operado hoje no porto de Santos, nos seus auges de movimentação”, ressalta Villaverde. Chankay é parte da Nova Rota da Seda, o maior programa do mundo de investimento estrangeiro em infraestrutura, criado pela China em 2013 e integrado por 150 países, que representam 70% da população mundial e mais de 50% do PIB global. Do total de países, 21 são latino-americanos.

Três das cinco rotas poderão ser inauguradas no atual governo: a Rota 5, que só requer alguns aperfeiçoamentos, a Rota 2 e a Rota 4. As rotas 1 e 3 deverão ser finalizadas entre 2027 e 2028 e dependem mais dos outros países do que do Brasil. Na Rota 5, uma obra inaugurada é o aeroporto binacional Rivera, no Uruguai, na fronteira com a cidade gaúcha de Santana do Livramento. A Rota 2 só precisa da instalação de alfândega, de um posto da Polícia Federal e da sinalização no Rio Amazonas, que permite chegar até o porto de Chankay.

Os apoios chegam de todos os lados. Em reunião com ministros da área econômica de oito países da região, três semanas atrás, o ministro dos Transportes e Comunicações do Peru, Raúl Pérez Reyes, disse à equipe do Ministério do Planejamento que deseja um ramal da Rota 3 para o seu território. O Chile aprova todas as rotas e informou deter os recursos necessários para o financiamento da sua parte no empreendimento. Um exemplo das 124 obras brasileiras previstas é a alça de acesso à ponte binacional Brasil-Paraguai, em Porto Murtinho, em Mato Grosso do Sul. A ponte é financiada por Itaipu, mas a alça de acesso faz parte do PAC e seu custo é de 475 milhões de reais. O edital saiu, a ordem de serviço foi dada e só falta tocar a obra.

O percurso das cargas embarcadas pelo Pacífico diminuirá 7 mil quilômetros na comparação com a saída por Santos

O Mercosul, ampliado com o ingresso da Bolívia, iniciou a verificação de quais mecanismos tarifários e outros instrumentos podem facilitar a conexão das rotas. O Ministério do Planejamento trabalha desde dezembro em um estudo alentado para verificar o que, dentre os mecanismos do Mercosul, pode dinamizar as interligações. “A articulação política e institucional promovida pelo governo brasileiro em 2023 tem sido fundamental para a retomada dos diálogos entre os países sul-americanos acerca da governança regional para a conformação de uma rede articulada de infraestrutura”, ressalta Barros no estudo intitulado “Avaliação Crítica da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana ­(IIRSA) do Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (Cosiplan)”. O trabalho destaca a emergência econômica, produtiva e exportadora ao sul do subcontinente, em especial o Centro Oeste do Brasil, em um contexto “completamente distinto daquele de 23 anos atrás”.

O Brasil tem, aproximadamente, 17 mil quilômetros de fronteira terrestre, com mais de 500 municípios nessa faixa. Estudos elaborados pela Cepal e pela Secretaria de Comércio Exterior, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, indicam que apenas 1% das empresas brasileiras exporta, o que totaliza, aproximadamente, 25 mil firmas. Destas, apenas 15 mil negociam na região. Ainda que os países vizinhos representem apenas 1,3% do total das importações mundiais, são o destino de 13% das nossas exportações totais, e de 35% das exportações de produtos com intensidade tecnológica alta e intensidade tecnológica média-alta. Na direção oposta, o mercado brasileiro é destino para produtos dessas mesmas categorias provenientes do entorno. No comércio intrarregional, mais de 80% dos fluxos são de manufaturados. Em contrapartida, as exportações do Brasil para a China, principal parceiro comercial, são constituídas de apenas 2,9% de produtos manufaturados, sublinha o técnico do Ipea.

Binacional. A ponte que liga o Brasil ao Paraguai é financiada por Itaipu – Imagem: Toninho Ruiz/Semadesc/GOVMS

No Consenso de Brasília, assinado em maio do ano passado por líderes sul-americanos, consta a importância de melhorar a infraestrutura e a logística da região. Na terceira Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos e da União Europeia, Lula justificou a busca de integração regional. “Só crescemos, de forma sustentável, com integração ao nosso entorno regional”, salientou. O presidente reforçou ainda a importância da multimodalidade e de priorizar os projetos de alto impacto para integração física e digital. “Ao construir o corredor bioceânico, reduzimos custos de nossas exportações para os mercados asiáticos e geramos emprego e renda para o interior do nosso continente.”

Na América do Sul, ressalta o estudo, um dos principais desafios logísticos é manter rotas frequentes e diretas entre a costa do Pacífico sul-americano e os principais mercados asiáticos para que os fluxos comerciais competitivos por este caminho não se limitem a commodities minerais. A escala para as conexões diretas necessita de vários corredores e rotas estruturadas. A existência de um corredor contribuiu para a viabilidade dos outros, portanto, não podem ser vistos como vias concorrentes, mas complementares. Na medida em que um caminho funcione bem e haja adaptação da infraestrutura portuária, adequação dos acordos de transportes, melhora da gestão aduaneira e harmonização de normas, haverá o efeito multiplicador para os demais.

Barros frisa três limitações a serem superadas, com base no último relatório de atividades do Cosiplan, elaborado em Buenos Aires, em 2017. A primeira é a pequena participação multimodal, apenas 0,3% dos investimentos. A segunda é a pequena participação histórica dos bancos de fomento, que financiaram, juntos, cerca de 2,5 bilhões de dólares de um total investido de quase 50 bilhões, o equivalente a 5% do total. A terceira é a alta concentração de projetos no modal rodoviário. Cabe ressaltar, diz o documento, que houve muita concentração em transportes e menos atenção para energia e comunicação, quando a racionalidade impõe trabalhar de forma articulada, em cada rota, transporte, logística, energia e comunicação, de modo a proporcionar importantes sinergias. •

Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Rumo ao Pacífico ‘

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