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Pó de osso

O buraco de 20 bilhões de reais no balanço das Lojas Americanas provoca perdas enormes e generalizadas

Cobiça. Sicupira, Lemann e Telles, principais acionistas da empresa, levam ao extremo a maximização dos lucros, mal que assola o capitalismo - Imagem: Redes sociais e Mauro Pimentel/AFP
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Novas revelações a cada dia deixam claro que a crise da Lojas Americanas, considerado o maior escândalo do mercado de capitais brasileiro, implica perdas enormes para mais de 140 mil acionistas minoritários, risco de desemprego para 44 mil funcionários e possível fechamento de centenas de pequenas lojas de shopping centers e ruas de comércio que dependem do fluxo de clientes da empresa para gerar o seu próprio movimento. A tradicional cadeia de lojas de varejo, única competidora nacional de peso diante de gigantes como ­Amazon e Mercado Livre, revelou a existência de um rombo de 20 bilhões de reais e uma dívida estimada até agora em 40 bilhões. Uma semana depois da divulgação, na quarta-feira 11, da cratera no balanço, as ações da companhia acumulavam desvalorização de 85% e seu valor de mercado, perda de 9 bilhões de reais. Investimentos em fundos do Nubank e outras instituições que mantinham papéis das Americanas em carteira foram também prejudicados. Os sócios da 3G Capital, principal acionista da varejista, são Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil, segundo o ranking de 2022 da revista ­Forbes, Marcelo Telles, o terceiro da lista, e Beto Sicupira, o quarto colocado. O grupo também controla a Eletrobras, a maior empresa de energia do País.

Entre os problemas apontados por economistas e profissionais do mercado de capitais destacam-se a busca obsessiva, no limite da legalidade, de lucro máximo para os acionistas, o uso da política ESG, de boas práticas de meio ambiente, sociais e de governança, para desviar a atenção de enormes diferenças salariais e operações financeiras duvidosas praticadas há dez anos e relações truculentas com fornecedores, tudo acompanhado de perto por bancos que agora clamam contra a má gestão da empresa. Acrescentem-se ao conjunto de problemas a regulação frouxa por parte das autoridades do mercado de capitais, a supervisão realizada por duas das maiores firmas de auditoria do mundo, a ­Pricewaterhouse­Coopers e a KPMG, não raro apontadas como pouco atentas ou mesmo coniventes com os administradores de firmas que fiscalizam, e o monitoramento capenga por agências globais de risco, dispostas a rebaixar a “nota” de classificação da companhia só depois de a casa cair.

Antes de anunciar o rombo, a empresa pagou dividendo recorde de 333 milhões de reais

A “grotesca debacle das Lojas Americanas” pode ser vista de duas formas, segundo Fábio Alperowitch, ­sócio-fundador da Fama Investimentos. A primeira, diz, é a visão tradicional, segundo a qual executivos da companhia durante anos supostamente fraudaram as demonstrações financeiras da empresa, ocultando um rombo colossal e trazendo vultosos prejuízos a centenas de milhares de acionistas, debenturistas, credores, fornecedores, cotistas dos fundos imobiliários que detêm suas lojas e executivos que possuíam parcela relevante de ­suas reservas em planos de incentivo, além de colocar em risco o emprego de mais de 40 mil trabalhadores. Por esta visão tradicional, que, afirma o especialista, está correta, a Americanas é protagonista de um dos maiores escândalos da história do mercado de capitais, com dimensão relevante inclusive na escala global. “Mas há uma maneira complementar de olhar para esta questão”, prossegue Alperowitch, “que é considerar a Americanas, além de autora, também como engrenagem de um sistema muito maior e bem mais complexo, um sistema nocivo que transcende as fronteiras da empresa e que precisa ser debatido, sob o risco de continuarmos nos deparando com histórias semelhantes.” Trata-se da maximização do lucro para acionistas a qualquer custo, com grande dano para a sociedade.

A Fama é um fundo de investimento criado há 20 anos que só aplica em empresas que respeitam as práticas ESG e costuma obter bons resultados. O fundo tinha ações da Lojas Americanas, empresa integrante do Índice de Responsabilidade Social da Bolsa, mas teria saído da posição há cerca de três anos, por considerar estranhos alguns aspectos da gestão da empresa. Esse desinvestimento é citado por profissionais do mercado de capitais como indício de que estão certos aqueles que consideram a indicação do ex-presidente do Santander Sergio Rial, para uma curtíssima passagem à frente da Lojas Americanas, uma estratégia para trazer a público uma situação há muito tempo conhecida pelos controladores, que fizeram várias tentativas malsucedidas de enfrentamento do problema.

Faroeste. A CVM, “xerife” do mercado de capitais, deixa a festa rolar – Imagem: CVM

Segundo resumiu a newsletter Reset, especializada em investimentos no mercado de capitais, a Americanas tinha entre 15 bilhões e 17 bilhões de reais em financiamentos a fornecedores feitos por meio de bancos, e que, em vez de constarem como dívida financeira no balanço, foram lançados como dívidas com fornecedores. Além disso, esse volume de dívida bancária não estava totalmente refletido na chamada “conta fornecedores”, que relaciona os valores devidos. Cada vez que a Americanas pagava juros aos bancos por conta dos financiamentos a fornecedores, a contabilidade da empresa subtraía as taxas do total da conta.

Com uma despesa financeira artificialmente menor, sublinha a Reset, o lucro da Americanas ao longo dos anos foi inflado. A revisão das demonstrações financeiras de anos pregressos “fatalmente demonstrará que os lucros reportados, que balizaram a distribuição de dividendos aos acionistas e também orientaram a remuneração variável de executivos, estavam superavaliados”, prevê a publicação.

“O que aconteceu está relacionado com uma governança que só se importou com os acionistas, como é a prática do mundo financeiro há ao menos duas décadas”, destaca o economista Lício da Costa Raimundo, professor da Facamp. O escândalo da Lojas Americanas, diz, é mais um ­case que mostra como a lógica da maximização do valor do acionista esvazia todas as empresas na qual se instala e deixa o bagaço para os incautos, ou seja, os acionistas minoritários, trabalhadores, financiadores, fornecedores, clientes e Estado. “Passou da hora de considerarmos gente como Lemann, Sicupira e Telles não como gênios da finança, mas como o que eles realmente são, predadores sociais”, dispara o economista. É preciso considerar, diz, o impacto do provável fechamento de várias lojas da Americanas sobre inúmeros pequenos empreendedores e trabalhadores em malls e pequenos shoppings centers pelo País, dada a lógica de montar um shopping a partir da estratégia de negócio da loja-âncora.

Quem paga a conta? Acionistas minoritários, fornecedores e funcionários

Segundo Ikaro Chaves, diretor da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras, o mesmo método colocado em prática pela 3G Capital na Lojas Americanas foi adotado na gestão da Eletrobras. “É um grupo que opera de forma parasitária. Eles estão aplicando a mesma sistemática de gestão, com cortes absurdos de custos e demissão de funcionários que têm muita experiência no sistema elétrico. Deixaram a empresa em uma situação de enorme vulnerabilidade, logo ela quebra e eles vão embora. É assim que fazem”, alerta.

Segundo os jornais, antes de anunciar o rombo no balanço, a Lojas Americanas pagou dividendo recorde de 333 milhões de reais aos seus acionistas no terceiro trimestre de 2022. Pesquisa realizada, em 2021, pelo especialista em governança corporativa Renato Chaves, em parceria com a FGV, mostrou que dentre todas as empresas pertencentes ao Índice Bovespa, a Americanas é a que tinha a segunda maior discrepância salarial entre o CEO e a média dos colaboradores. O principal executivo da companhia tinha uma remuneração 431 vezes maior do que a média da empresa. Em 2019, a mesma relação foi de 663 vezes e a Americanas ocupou o topo das disparidades salariais.

O grande destaque dado pela empresa ao seu desempenho em práticas ESG pode ter desviado a atenção de aspectos essenciais. “Os gestores da Americanas parecem mais preocupados com o acessório do que com o principal. Conhecem em detalhe a composição étnica e de gênero dos seus mais de 44 mil funcionários e o destino dos resíduos das suas 3,5 mil lojas. Sabem que fizeram mais de 350 mil entregas de produtos em favelas usando 343 veículos ecoeficientes. Contudo, ignoram como geraram um rombo de 20 bilhões. O pequeno investidor, que acreditou no sonho, foi altamente prejudicado”, destacou um analista de investimentos que optou por permanecer anônimo.

Consequências. A tragédia de Brumadinho tem relação com o corte deliberado nos custos de manutenção – Imagem: Mauro Pimentel/AFP

Os desastres para a sociedade provocados pela política dominante no universo corporativo e aplicada à risca pelos controladores da Lojas Americanas, de maximização dos lucros a qualquer custo, são conhecidos no País em casos trágicos como os dos desastres de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, em 2015, causados pela Vale. Os balanços da companhia atestam uma drástica redução dos investimentos em manutenção das barragens das represas de rejeitos de minério, segurança, saúde e inovação acompanhada de recordes de remuneração de acionistas e diretores. A relação entre a remuneração média da diretoria e o menor salário administrativo chegou a 630 vezes no período.

Sob risco de enormes perdas caso a Lojas Americanas não receba volumoso aporte de capital da 3G Capital, os bancos credores já entraram na Justiça contra a empresa. Segundo o BTG, os acionistas da Americanas agiram com “má-fé e premeditação”. O Ministério Público vai apurar se diretores venderam ações antes do anúncio do rombo e a CVM anunciou a abertura de quatro processos. Os acionistas minoritários deverão recorrer à Justiça, no País e nos EUA, em busca dos seus direitos. O líder do PP, André ­Fufuca, encaminhou requerimento de criação de uma CPI para investigar o escândalo. “Os homens mais ricos do Brasil, donos da 3G Capital, estão envolvidos no rombo bilionário das Americanas, na privatização da Eletrobras e têm um especial ‘interesse’ por educação básica. É preciso cutucar esse vespeiro”, disse o deputado ­Glauber Braga, do PSOL, em uma rede social. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1243 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Pó de osso “

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