Economia

Passos no escuro

A alta da bandeira vermelha é a primeira de uma série de reajustes esperados em consequência da crise hídrica

(FOTO: iStockphoto)
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O aumento anunciado, na terça-feira 29, pela Agência Nacional de Energia Elétrica, de 52% no adicional da bandeira vermelha das contas de luz em julho, além de elevar o custo da energia elétrica e a inflação, aprofundará o abismo socioeconômico. Para piorar, o governo, em vez de usar todos os recursos disponíveis para atenuar­ o problema, foge da decretação de um racionamento, que poderia poupar água das represas hidrelétricas e diminuir o custo da eletricidade, mas ampliaria o seu desgaste político. Sem racionamento, a possibilidade de apagão cresce a ­cada dia. “O período seco começou e o nível dos reservatórios tem diminuído pouco a pouco. O perigo maior é de ter algum problema de blackout, apagão, principalmente no horário de ponta, que é quando tem mais risco, das 18 às 21 horas”, avisa Mauricio Tolmasquim, professor titular da Coppe/UFRJ e ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética.

Preocupados com a possibilidade de interrupção do suprimento de energia elétrica no pico do consumo, associações de grandes consumidores industriais, de investidores em autoprodução de energia e das indústrias de base reuniram-se com o ministro Bento Albuquerque, de Minas e Energia, para estudar um programa de racionalização com vista a evitar a interrupção da produção por apagões. A principal medida cogitada é remanejar parte da demanda desses consumidores, do horário de ponta para outro período do dia, mas a solução teria esbarrado no alto valor da compensação exigida pelas empresas, de duas a três vezes superior à tarifa média.

A crise energética aprofundará o abismo social e econômico

Enquanto empresas e condomínios residenciais das classes média e alta contam com geradores a óleo adquiridos no apagão de 2001 ou tratam de substituí-los por sistemas modernos movidos a energia eólica ou solar, os trabalhadores sofrem com o impacto desproporcional dos reajustes sobre a renda, reduzida pelo desemprego elevado e a pandemia e não dispõem de nenhuma alternativa de fornecimento de eletricidade. A saída será a mesma de 20 anos atrás, recorrer ao “kit apagão” de velas de parafina e lanternas a pilha vendidas por camelôs.

A alta da bandeira vermelha é a primeira de uma série de reajustes esperados em consequência da crise hídrica, da falta de previsibilidade, de investimentos insuficientes e da conveniência política do governo, motivos que obrigam ao uso de usinas térmicas de custo de operação elevado. “A Aneel transfere para o consumidor o custo da geração adicional de energia termelétrica mais cara e busca objetivamente inibir o consumo”, resume a Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras.

O nível dos reservatórios das regiões Sudeste e Centro-Oeste, fornecedores de 70% da geração hidrelétrica do País, era de 32,1% em maio, o mais baixo para o mês desde 2001, quando houve apagão e racionamento. O governo federal emitiu alerta de risco hídrico, criou a Câmara de Regras Excepcionais para a Gestão Hidroenergética e reajustou a bandeira vermelha, mas não decretou racionamento, o que preocupa diante da baixa probabilidade de chover o suficiente para recuperar os reservatórios até novembro, quando começa o período úmido. “Além das medidas que estão sendo tomadas, uma opção seria um racionamento pequeno, inferior a 5%, não igual àquele de 2001, que foi a redução de 20% da energia, para garantir mais segurança de abastecimento e, eventualmente, um custo menor, mas isso teria impactos políticos muito grandes. Por esse motivo, não acredito que venha a ser decretado”, afirma Tolmasquim.

O racionamento, diz, requer simulações para identificar quanto se economizaria com cada megawatt-hora poupado. Um porcentual acima de 5%, além de ser difícil de implementar, não é uma necessidade evidente, dado que as margens para economizar ficaram menores. “Em 2001, lâmpadas convencionais foram trocadas por produtos mais eficientes e quem tinha freezer parou de usar, mas hoje há menos opções, em primeiro lugar porque aumentaram os usos da energia elétrica, que passou a ser mais indispensável. Um racionamento é, portanto, mais limitado, nessa perspectiva, mas é o que deveria ser estudado”, ressalta o acadêmico.

Muitas empresas apostam na energia eólica para escapar de novo apagão. (FOTO: iStockphoto)

Na comparação com 2001, tanto um racionamento quanto apagões neste momento afetariam de modo mais amplo a atividade econômica e o cotidiano dos brasileiros, dada a generalização do uso da internet em todos os ramos industriais e de serviços e nas residências, o aumento do número de unidades de eletrodomésticos e eletrônicos e a elevação do seu uso na pandemia, em teletrabalho e outras finalidades. “Há um fenômeno mundial de eletrificação da economia, em todos os setores. O uso de veículos elétricos, que cresce no mundo, ainda não chegou ao Brasil, mas mesmo na parte domiciliar há cada vez mais casas com micro-ondas, ar-condicionado, na família cada um tem um aparelho celular que precisa ser carregado”, destaca Tolmasquim. A eletricidade, diz, passou a ser uma espécie de fonte de energia dominante e isso significa que tanto o aumento da tarifa quanto a escassez de energia têm impacto sobre o consumidor e a atividade econômica.

O medo da reação dos eleitores às tarifas não é o único a assombrar Bolsonaro. Na sua empreitada em busca da reeleição, conta com o auxílio do ministro da Economia Paulo Guedes, que trata de aplainar o caminho do chefe com medidas populares, a exemplo da taxação dos mais ricos e do aumento do Bolsa Família prometido para daqui a três meses, quando se encerrará o auxílio emergencial recém-prorrogado.

Forçados a reduzir ainda mais o uso da eletricidade por conta da alta da tarifa de energia, os menos favorecidos sofrem ainda com a queda de rendimentos, a persistência do desemprego recorde de 14,7%, o aumento dos preços dos alimentos, do aluguel e dos combustíveis, enquanto uns poucos se beneficiarão do efeito inverso, de concentração de renda. O topo da pirâmide de renda vai encarar os prováveis apagões em uma posição ainda mais privilegiada. Segundo a Receita Federal, 20.858 indivíduos pagaram apenas 1,8%, em média, em impostos sobre rendimentos somados de 230 bilhões de reais recebidos no ano passado.

Os efeitos de um apagão serão mais graves do que em 2001

Em maio, o reajuste das contas de luz em 5,37% provocou a maior alta do ­IPCA dos últimos 25 anos naquele mesmo mês, de 8%, segundo o IBGE. A gasolina, no topo dos itens de maior peso no índice, tende a subir ainda mais após a decisão da Arábia Saudita, maior produtor mundial de petróleo, de elevar os preços para os principais consumidores asiá­ticos depois da desistência da Organização dos Países Produtores de Petróleo de conter reajustes, segundo noticiou a agência Bloomberg na terça-feira 6. A deliberação da Petrobras de reajustar, na mesma data, o diesel, a gasolina e o gás de cozinha foi seguida de uma retomada dos rumores de greve dos caminhoneiros, recebidos pelo presidente da companhia, general Silva e Luna, na sede­ da empresa uma semana antes, quando disse que a proposta de política de preços sugerida pela categoria estava em estudo.

O crescimento econômico impelido pelo boom dos mercados de commodities e pelo esgotamento da capacidade ociosa das empresas esbarra, portanto, na crise hídrica e no aumento do custo da energia e reaviva os temores de apagão e de greve de caminhoneiros. A ironia para os governos que, desde 2016, cuidaram de garantir crescimento econômico insignificante em nome da austeridade fiscal é que justamente neste ano, quando um aumento­ contínuo dos preços das commodities finalmente impulsiona o PIB, cresce a apreensão em Brasília quanto aos efeitos dessa expansão em termos de elevação do consumo de energia. Cabe acrescentar que a crise energética tende a piorar ainda mais com a privatização da Eletrobras, a grande articuladora do sistema hidrelétrico, o que amplia o risco político para Bolsonaro, assim como aconteceu com FHC, que terminou por abandonar a desestatização do setor após o resultado desastroso do apagão para a sua gestão e para os planos eleitorais do PSDB.

Publicado na edição nº 1165 de CartaCapital, em 8 de julho de 2021.

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