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O rugido do agro

A tributação do setor para compensar as perdas da redução do ICMS sobre combustíveis desperta a ira de ruralistas

O rugido do agro
O rugido do agro
Os produtores rurais tentaram, em vão, impedir a votação da proposta em Goiás - Imagem: Denise Xavier/Alego
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Asfixiados financeiramente pela redução do ICMS sobre combustíveis, aquela cortesia eleitoral de Jair Bolsonaro feita à custa da arrecadação dos estados, Goiás e Paraná, governados por aliados do atual presidente, decidiram tributar o agronegócio e isso atiçou uma revolta dos ruralistas, inclusive com invasões das Assembleias Legislativas. Os ataques são mais um episódio da onda de fúria da ala mais retrógrada­ do agronegócio, que não aceita pagar impostos proporcionais à sua geração de riqueza e multiplica ações golpistas e atos criminosos, contemplados em silêncio conivente por forças policiais e o Exército. No teste de força, os ruralistas obtiveram a primeira vitória, com a retirada do projeto no Paraná. Além disso, conseguiram dividir as opiniões na equipe de transição do governo eleito, em Brasília, com relação ao nefando “PL do Veneno”.

O projeto de Goiás estabelece uma contribuição de até 1,65% sobre a produção agropecuária no estado, o equivalente a 1 bilhão de reais, a ser direcionada a um fundo de infraestrutura. Foi aprovado em primeiro turno sob intenso protesto de ruralistas, que invadiram a Assembleia. A aprovação definitiva em segundo turno ocorreu em sessão fechada ao público. O autor da proposta é o governador Ronaldo Caiado, do União Brasil, partido com relações estremecidas na frente de direita após a retenção de 23 bilhões do Fundo Partidário, em conse­quência da litigância de má-fé do presidente do PL de Bolsonaro, Valdemar Costa Neto, barrada pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes. Costa Neto questionou a lisura das eleições e a confiabilidade das urnas com argumentos insustentáveis diante da lei e o PL foi multado em valor equivalente ao do Fundo Partidário.

A cortesia eleitoral de Bolsonaro agora se volta contra sua aguerrida base

O projeto do Paraná, encaminhado ao Legislativo pelo governador Ratinho Júnior, previa a tributação da produção agropecuária. O objetivo era constituir, com a receita do tributo, um fundo de infraestrutura semelhante ao de Goiás, mas fracassou depois de o governo Ratinho retroceder sob forte pressão do agronegócio. “A mamata tributária do setor agro precisa acabar. Dos 300 bilhões de reais recolhidos anualmente de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido pelo governo federal, só 1,5 bilhão é pago pelo setor do agronegócio. Já dos 200 bilhões de Imposto de Renda da Pessoa Física, produtores rurais contribuem com 2,5 bilhões. O total de imposto sobre a renda é, portanto, de 4 bilhões. Isso é ridículo”, disparou o economista Sérgio Gobetti, pesquisador do Ipea, em uma rede social. “Não estou falando de imposto sobre consumo nem de imposto sobre o pequeno produtor que gera o que comemos e mal ganha para sobreviver. Falo do exportador de soja que lucra milhões e paga uma migalha de IR.” O imposto sobre exportações, cabe acrescentar, incide sobre o lucro.

Vários integrantes do agronegócio e dirigentes das suas associações empresariais não admitem nem mesmo discutir um aumento da tributação do setor, atitude que denuncia “a posição confortável de quem não precisa do setor público para receber saúde, educação ou assistência, quando está desempregado ou subempregado. Mas essa não é a realidade de 90% da população”, chama atenção ­Gobetti. Além de dificultar a busca de uma saída para o estrangulamento financeiro imposto por Bolsonaro aos estados, a ala retrógrada do agronegócio acumula provas de participação em ataques golpistas. A começar pela onda de bloqueios de rodovias federais, retomada horas depois do anúncio do resultado do segundo turno das eleições presidenciais, com grandes prejuízos materiais e humanos.

Não é manifestação, é terrorismo golpista – Imagem: PRF/MT

São numerosas ações violentas dos que se recusam a aceitar a vitória de um presidente eleito democraticamente . Na segunda-feira 28, bolsonaristas chegaram a destruir uma adutora com uma escavadeira e deixaram parte da população da cidade de Ariquemes, em Rondônia, sem abastecimento de água. Um dia antes, uma frota de caminhões da Amaggi foi atingida por tiros em Novo Progresso, no Pará, onde manifestantes bolsonaristas tentavam bloquear estradas. Um dos acionistas da empresa é o ex-ministro da Agricultura e fazendeiro Blairo Maggi, que mantém boas relações com Lula. Pouco depois, um grupo de bolsonaristas bloqueou a BR-163 e atirou na Polícia Rodoviária Federal.

O Ministério Público Federal no Pará investiga uma série de ações cometidas pela “associação criminosa” autora dos atentados. A Justiça Federal autorizou a PF a cumprir dez mandados de prisão temporária e 11 de busca e apreensão na região. Os presos são principalmente ruralistas e empresários de Novo Progresso, no sudoeste do Pará, região de intensa atividade do garimpo ilegal em terras indígenas e de grilagem.

Caminhões financiados pelo BNDES a dois meses das eleições engrossam os atos golpistas

No domingo 20, em meio a várias paralisações do tráfego por barreiras montadas por golpistas, um grupo atirou em uma praça de pedágio, incendiou uma ambulância e um carro-guincho na ­BR-163, próximo a Sorriso, em Mato Grosso, considerada a capital nacional do agronegócio. A rodovia, principal rota de transporte de soja no País, é um paiol de pólvora antipetista, com grupos acampados para pressionar as Forças Armadas a impedir a posse do presidente Lula. O comércio de Sinop, outro polo agropecuário, fechou em apoio aos golpistas. O MPF pediu a quebra dos sigilos telefônico e telemático de 14 suspeitos de liderar os atos golpistas. A Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul também encaminhou ao STF os nomes de sete líderes de manifestações antidemocráticas diante de quartéis do estado e em rodovias, entre eles os fazendeiros Waldeli dos Santos Rosa, Germano Francisco Bellan, Rene Miranda Alves e Renato Nascimento Oliveira.

A junção do bolsonarismo com o agronegócio retrógrado prospera no interior da máquina do Estado. Além de desmontar as estruturas de fiscalização do uso da terra com respeito ao meio ambiente, o governo ofereceu financiamento, através do BNDES, ao Grupo Sipal, com atuação na agropecuária e na venda de armas, que teve suas contas bancárias bloqueadas pelo STF devido ao envolvimento em ações golpistas. O grupo recebeu financiamento de 22,5 milhões de reais do banco público, dois meses antes da eleição, para adquirir caminhões. Alguns dos veículos foram utilizados em protestos contra o resultado do pleito, em Brasília.

Os tratores viraram destaque no desfile de 7 de Setembro. Cada brasileiro consome 7,5 litros de pesticidas por ano, recorde mundial – Imagem: iStockphoto e Marcello Casal Jr./ABR

Passar o trator nos últimos redutos normativos civilizados parece ser o objetivo do mutirão de ações desencadeadas nas últimas semanas pelos golpistas. Uma das iniciativas foi o início, na terça-feira 29, em meio à realização da ­Copa do Mundo, da discussão no Senado­ do projeto de lei que altera as regras do registro de agrotóxicos, conhecido como Projeto do Veneno. A proposta facilita o registro de novos agrotóxicos, diminui as atribuições do Ibama e da Anvisa e suprime dispositivos da legislação atual que vetam a autorização de uso de pesticidas causadores de doenças.

Subestimar a gravidade dos problemas causados pelos pesticidas para a população seria um erro. Segundo a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, os agrotóxicos contaminam cerca de 70% dos alimentos ingeridos pelos brasileiros, que consomem em torno de 7,5 litros de agrotóxicos por ano, a maior taxa de consumo per capita do mundo. Inúmeras pesquisas e trabalhos científicos atestam a nocividade dos pesticidas. Uma análise de 51 estudos realizados entre 2015 e 2021, na maior parte por pesquisadores das regiões Sul e Sudeste, que concentram complexos agrícolas de commodities, chegou a conclusões alarmantes. O trabalho, assinado por Monica Lopes-Ferreira, do Instituto Butantan, mais oito coautores, foi publicado no Jornal Internacional de Pesquisa Ambiental e Saúde Pública.

Os estudos compilados relatam efeitos tóxicos múltiplos, principalmente em trabalhadores rurais, provocados por inseticidas, herbicidas e fungicidas. A população em geral também vem sendo exposta a pesticidas utilizados na produção de ­commodities diretamente, por via dérmica, oral, ocular e por vias respiratórias, bem como indiretamente, por meio do consumo de resíduos em alimentos e na água. Outra importante via de contaminação, dizem os autores, é a exposição doméstica ou ocupacional a múltiplos agrotóxicos durante a gravidez, o que determina alterações no desenvolvimento fetal e complicações graves na infância. “Além disso, o leite materno contaminado leva a deficiências imunológicas pronunciadas no recém-nascido, aumentando os riscos de infecções, principalmente meningite e infecções do ouvido interno em lactentes.”

O PL do Veneno voltou à pauta no Senado em plena Copa do Mundo

Em 2017, o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas registrou 2.548 casos de contaminação por agrotóxicos no Brasil. Segundo o ­Sinitox, o número de casos de intoxicações e envenenamentos não diminuiu nos últimos anos, ao contrário do que sugerem as estatísticas. O que caiu foi a participação dos Centros de Informação e Assistência Toxicológica nos levantamentos. O Ministério da Saúde estima que, para cada ocorrência de intoxicação por agrotóxico notificada, outras 50 não são notificadas.

O PL do Veneno, que na quarta-feira 30 poderia ser votado a qualquer momento, foi condenado por instituições e entidades ligadas à saúde, como o Conselho Nacional de Saúde, o Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador, do Ministério da Saúde, a Anvisa, a Fiocruz e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, e ainda por relatores da Organização das Nações Unidas.

A disparada de desmandos e o empoderamento da parcela transgressora do agronegócio, que lucra com o uso abusivo de pesticidas, a grilagem de terras, as queimadas na Amazônia, a invasão das terras indígenas em aliança com o garimpo e a extração de madeira ilegais, incluem o financiamento do terrorismo de extrema-direita. A escalada atual confirma as previsões de que, no apagar das luzes do atual governo, os segmentos politicamente mais atrasados do agronegócio lutariam para garantir o que for possível em vantagens e benefícios conquistados nos governos Temer e Bolsonaro, ainda que obtidos à custa de retrocessos.

É possível conciliar a pecuária com a conservação ambiental – Imagem: iStockphoto

Ao lado dos que buscam tumultuar o País em benefício próprio, floresce um agronegócio altamente produtivo, respeitador das leis e merecedor de prestígio mundial, que tende a assumir uma importância cada vez maior. Um exemplo é a iniciativa de um grupo de pecuaristas reunidos na Liga do Araguaia, em Mato Grosso, que se declara voltada ao desenvolvimento sustentável no Vale do Rio Araguaia e defende a adoção de práticas sustentáveis na pecuária de corte na região, “em estrita observância às obrigações e direitos previstos no Código Florestal e na legislação ambiental”, segundo o site da organização. O grupo busca orientar-se por uma combinação de objetivos de produtividade, conservação ambiental, redução de emissões e turismo, na forma de projetos concebidos e implantados em parceria com organizações públicas e privadas.

“Em um momento em que a segurança alimentar e as mudanças climáticas mobilizam a sociedade mundial, a Liga do Araguaia lidera um movimento pela adoção de práticas de pecuária sustentável no Vale do Araguaia”, sublinha a empresa. O objetivo da organização de pecuaristas é obter certificação de baixo carbono, um passaporte para ter acesso a mercados cada vez mais exigentes no que se refere à origem comprovadamente sustentável dos produtos. “Acho que é uma excelente saída para reduzir emissões e modernizar a pecuária extensiva”, ressalta Walter Belik, professor titular aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e diretor do Instituto Fome Zero. “Sou entusiasta dessas iniciativas que comprovam que a produção de carne pode contribuir para a redução da emissão de gases, seja pela melhor nutrição do gado, seja pela eliminação absoluta de uso de áreas desmatadas.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1237 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O rugido do agro”

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