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Crime patrocinado

Moraes possui uma extensa lista de financiadores de atos golpistas. Por ora, eles tiveram apenas contas bloqueadas

Reação. O presidente do TSE busca asfixiar financeiramente os golpistas. Será o suficiente para detê-los? - Imagem: Evaristo Sá/AFP e Alejandro Zambrana/TSE
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Na manhã do domingo 27, seis caminhões da Amaggi circulavam em comboio pela rodovia que liga o estado de Mato Grosso ao município paraense de Novo Progresso, quando foram alvejados por disparos de armas de fogo de variados calibres. A Polícia Militar não identificou os responsáveis pelo ataque e informou não haver feridos, mas o relato dos motoristas da empresa do ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi, que apoiou Lula nas eleições, mostra que por pouco não aconteceu a primeira morte diretamente ligada aos bloqueios de rodovias desde a derrota de Jair Bolsonaro. Embora com força decrescente, os atos golpistas nas estradas ou nas portas dos quartéis mantêm-se graças ao inequívoco apoio e financiamento de alguns empresários, que começam a ser nomeados nas investigações do Tribunal Superior Eleitoral e nos relatórios enviados ao ministro Alexandre de Moraes.

Desde a utilização de gruas e guindastes caríssimos até a farta distribuição de pães, bebidas e carne para churrasco nas rodovias e quartéis de Norte a Sul do Brasil, o financiamento dos atos é evidente. Um exemplo é o município de Palhoça, em Santa Catarina, onde o acampamento dos “patriotas” foi montado em frente a uma loja da Havan, rede pertencente ao bolsonarista Luciano Hang. O empresário-papagaio já recuou do apoio logístico e divulgou nota na qual nega financiar as ações golpistas, mas seu nome é um dos que constam no relatório entregue a Moraes pelo procurador-geral de Justiça de Santa Catarina, Fernando Comin. Relatórios semelhantes foram entregues ao presidente do TSE pelos procuradores-gerais de São Paulo e Espírito Santo. O material está sendo organizado por Moraes, que deu prazo até o fim de novembro para que a Polícia Rodoviária Federal e as corporações policiais de todos os estados enviem à Corte informações sobre os organizadores e financiadores dos atos.

Até o momento, as medidas cautelares atingem 43 pessoas físicas ou jurídicas

Mas, afinal de contas, quem financia as ações golpistas? O bloqueio de contas determinado por Moraes atingiu 43 pessoas físicas ou jurídicas, em um cenário amplamente dominado por empresários ligados ao transporte de cargas e ao agronegócio. Trinta e quatro investigados são de Mato Grosso, entre eles os empresários Airton­ Willers, Alexandro ­Lermen, ­Argino ­Pedin, Assis Cláudio Tirloni, ­Cairo ­Garcia Ferreira, Diomar­ ­Pedrassani, ­Edilson Piaia, ­Rafael ­Bedin, Roberta­ ­Bedin e ­Sérgio ­Bedin. Informações do material em poder de Moraes foram ­obtidas pelo jornal O Estado­ de S. ­Paulo e revelam outros nomes de políticos e empresários elencados pelas polícias. Em ­Goiás, por exemplo, aparecem Tales ­Cardoso ­Machado, Pedro Sanches Roja Neto, Leonardo ­Rodrigues de ­Jesus Soares,­ Sandro Lopes e ­Hernani José ­Alves.

São claras as digitais do chamado “ogronegócio” nas ações antidemocráticas. Em Mato Grosso do Sul, foram identificados os pecuaristas Rene Miranda Alves e Renato Nascimento Oliveira. No Acre, dois conhecidos fazendeiros de soja, Jorge José de Moura e Henrique Neto, estão entre os financiadores dos bloqueios nas estradas. No Paraná, foram apontados os empresários Valmor Geronimo Ferro, José Antonio Rosolen e Robson Leandro Calistro. Já no Maranhão, os atos em frente aos quartéis estariam sendo organizados pelo policial Marcelo ­Thadeu Penha Cardoso e por Cláudio Raposo, que foi candidato a deputado estadual pelo PTB. Procurado por CartaCapital, o procurador-geral de São Paulo, Mário Sarrubbo, afirmou por intermédio de sua assessoria não poder divulgar nomes envolvidos na investigação.

Com os muitos nomes já identificados, é chegado o momento de agir para punir, afirmam especialistas do meio jurídico que integram a equipe de transição de governo. Wadih Damous, ex-deputado federal e ex-presidente da OAB do Rio de Janeiro, avalia que passou da hora de ver os golpistas atrás das grades: “O ideal é que já houvesse, até para servir de exemplo, prisões preventivas para estes que estão financiando a tentativa de golpe”. Para Pedro Serrano, que coordenou o grupo de juristas responsável pela elaboração do Projeto da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, estimular as Forças Armadas a adotarem medidas violentas e darem um golpe contra os poderes constituí­dos é um crime previsto na lei: “Segundo o artigo 29 do Código Penal, os empresários que financiam esse tipo de movimento são partícipes. Então eles são, vamos dizer assim, coautores desse tipo de ilícito e respondem igualmente aos que estão lá na frente. Estão cometendo o mesmo crime”.

O advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, afirma existir “um crime claro” cometido por quem financia ou organiza os atos contra a estabilidade democrática: “Na Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito há previsão expressa de responsabilizar criminalmente quem participa desse tipo de ato. Estamos vendo, no Brasil, o crescimento de uma seita messiânica de atos irresponsáveis e criminosos”.

Passo em falso. Luciano Hang recuou no apoio logístico aos amotinados em frente de uma de suas lojas, em Palhoça – Imagem: Daniel Marenco/Agência O Globo

O que tem de ser feito, agora, e estamos discutindo isso na equipe de transição, é aprofundar a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, pois não é normal o que está acontecendo no Brasil.” São grupos pequenos, ressalta o advogado, mas de cunho fascista, de extrema violência e incentivo ao ódio: “Temos que responsabilizar. Acho que o Poder Judiciário está fazendo a coisa correta com a identificação de empresários e de quem financia os atos. Só com isso voltaremos a ter normalidade democrática no País”.

Damous elenca os ilícitos aos quais estão incorrendo os financiadores dos atos golpistas: “São crimes contra as instituições democráticas e suas respectivas penas estão previstas pelo Código Penal nos artigos 359L, 359M e 359N”. Além disso, completa o advogado, diversas outras modalidades de crime podem ser observadas. Ele cita como exemplos os casos que aconteceram com o ex-presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia, do PSDB, e com o músico e ex-ministro Gilberto Gil. “Aqueles que atacaram Maia e Gil incidiram no artigo 147A do Código Penal, que é perseguir alguém reiteradamente, ameaçando sua integridade física ou psicológica. Além do crime de injúria, com pessoas sendo xingadas constantemente. Dependendo do caso, há como tipificar organização criminosa. As manifestações de ódio não configuram liberdade de expressão, são simplesmente criminosas.”

Integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Rio, Gisele Cittadino afirma que a principal característica dos atos antidemocráticos é o desrespeito pela soberania popular. Isso, acrescenta, pede uma punição específica: “Daí não ser possível penalizar tal prática como se estivéssemos diante de uma mera extrapolação da liberdade de expressão, da qual pudessem resultar crimes de calúnia, injúria ou difamação”. Ela aponta a democracia como pilar fundamental da Constituição brasileira. “Quando as pessoas financiam atos antidemocráticos ou mesmo se reú­nem e pedem que os militares intervenham, porque não estão satisfeitas com o resultado­ do processo eleitoral, elas estão manifestando sua intolerância à democracia, à vontade da maioria, à decisão do povo.”

São claras as digitais do “ogronegócio” e do transporte de cargas nos violentos bloqueios de estradas

Assim como os poderes da República, afirma Cittadino, as Forças Armadas estão obrigadas a defender as instituições democráticas, tal como definido na Constituição: “E não há Estado Democrático de Direito sem a livre manifestação da soberania popular, assegurada por eleições regulares. Logo, uma das tarefas das Forças Armadas é defender e não atacar o processo eleitoral”. Segundo a especialista, Bolsonaro resolveu contestar as urnas eletrônicas para tentar desqualificar o sistema eleitoral. “Se as urnas estivessem fraudadas, a soberania popular não teria se expressado legitimamente.” Ela não vê necessidade de alterar o que diz a Constituição sobre as Forças Armadas, como forma de evitar interpretações equivocadas sobre o papel dos militares: “O texto é tão claro que não há como deturpá-lo”.

Na decisão em que determina o bloqueio das contas dos financiadores dos atos golpistas, Moraes diz que “o caráter danoso das manifestações ilícitas fica absolutamente potencializado, uma vez considerada a condição financeira dos empresários apontados como envolvidos nos fatos”. Segundo ele, “esse cenário exige uma reação proporcional do Estado, no sentido de garantir a preservação dos direitos e garantias fundamentais e afastar a possível influência econômica na propagação de ­ideais e ações antidemocráticas”.

Enquanto as prisões não acontecem, Cittadino avalia que é hora de o Brasil se debruçar sobre as várias propostas de criação de leis voltadas à proteção da democracia no País: “É chegado o momento de termos leis que inibam tanto o financiamento quanto a prática de atos individuais ou coletivos que busquem alterar o resultado de eleições regulares”. A bola está com Moraes, mas é no jogo coletivo das instituições que as ameaças golpistas devem ser punidas e superadas. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1237 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Crime patrocinado “

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