Economia

cadastre-se e leia

O mundo na ladeira

Há uma recessão global a caminho, e países como o Brasil vão sofrer mais

Pânico. O pacote ultraortodoxo de Liz Truss abalou o Reino Unido e assustou o mundo. Ao cabo, a premier renunciou pouco mais de um mês após assumir o governo britânico - Imagem: Andrew Parsons/#10DS e iStockphoto
Apoie Siga-nos no

O disparar quase simultâneo de alertas das principais agências econômicas mundiais confirma a iminência de uma recessão global de múltiplas causas e com duração tanto mais longa quanto for a insistência em combatê-la com a velha terapia ortodoxa, de inadequação cada vez mais evidente desde a crise de 2008. Os últimos relatórios do Banco Mundial, FMI, OCDE e Unctad-ONU não deixam dúvidas quanto à alta probabilidade de uma crise de grandes proporções e que deverá atingir com maior severidade paí­ses periféricos como o Brasil. Após a curta reanimação da economia, impulsionada pelos anabolizantes eleitorais do governo, devemos retomar o percurso de anos seguidos de baixo crescimento.

Mais que uma recessão, o que se configura é uma convergência de momentos agudos de várias crises, concordam o jornal Financial Times e analistas respeitados como Nouriel Roubini, professor da Stern School of Business da Universidade de Nova York, entre outros. A economia mundial passa pelo que vem sendo chamado de polycrisis ou crise global múltipla, com a incidência simultânea de uma guerra, inflação dos preços dos alimentos e dos combustíveis alavancada por restrições da produção de petróleo por parte da Opep, persistência da pandemia com efeito negativo na economia chinesa, virtual emergência climática, colapso da política estadunidense de quantitative easing e, como elemento mais importante, a tentativa de se resolverem os problemas contemporâneos com aumento dos juros, austeridade e demonização da atuação do Estado, em contradição com o uso intensivo do aparato estatal durante a pandemia.

“Após dois anos de flexibilização quantitativa, os Bancos Centrais começaram a encolher seus balanços e a liquidez parece ter desaparecido no espaço de apenas alguns meses, revelando vulnerabilidades agudas do sistema financeiro”, chama atenção o economista Raghuram G. Rajan, da Universidade de Chicago. Agora, acrescenta, está claro que a normalização da política monetária “será extremamente difícil e repleta de riscos”.

A desaceleração da economia mundial é mais forte do que a esperada e a inflação alastra-se

A economista Isabella Weber, professora na Universidade de Massachusetts, vê o momento atual como “uma época de emergências sobrepostas que exige reimaginar a formulação de políticas econômicas como uma forma de preparação para desastres”. É preciso, afirmou em entrevista ao portal Project Syndicate, empregar coordenação de mercado, e também de não mercado, para responder aos choques que inevitavelmente ocorrem à medida que as crises se multiplicam.

Os relatórios das agências econômicas internacionais não deixam dúvidas quanto ao perigo que se aproxima. “À medida que todos os Bancos Centrais aumentam simultaneamente as taxas de juro em resposta à inflação, o mundo pode estar se aproximando de uma recessão global em 2023 e uma série de crises financeiras em mercados emergentes e economias em desenvolvimento que as levariam a sofrer danos duradouros”, chama atenção o Banco Mundial em estudo abrangente, divulgado há algumas semanas. O Fundo Monetário Internacional ressalta, no relatório World Economic Outlook deste mês, que “a atividade econômica mundial está passando por uma desaceleração ampla e mais acentuada do que o esperado, com uma inflação mais alta do que a observada em várias décadas”. A crise do custo de vida, o aperto das condições financeiras na maioria das regiões, a guerra na Ucrânia e a persistente pandemia de Covid-19 pesam muito sobre as perspectivas, diz o FMI. O organismo prevê uma desaceleração do crescimento mundial, de 6% em 2021 para 3,2% em 2022 e 2,7% em 2023. É a perspectiva mais fraca de crescimento desde 2001, excetuados os períodos da crise financeira mundial de 2008 e a fase aguda da pandemia, em 2020. A OCDE, por sua vez, salienta que o PIB global estagnou no segundo trimestre deste ano, a produção caiu nas economias do G-20, a inflação tornou-se generalizada e, apesar da tendência de redução, permanecerá alta.

Com enfoque bem mais crítico, o ­Relatório de Comércio e ­Desenvolvimento 2022 da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento da ONU atribui parte importante do destino da crise à condução da política econômica dos países avançados. “Os movimentos das políticas monetária e fiscal nas economias avançadas correm o risco de levar o mundo à recessão global e à estagnação prolongada, causando danos piores do que a crise financeira de 2008 e o choque da Covid-19 em 2020”, dispara a Unctad. De acordo com o relatório, os rápidos aumentos das taxas de juro e o aperto fiscal nas economias avançadas, combinados com as crises em cascata resultantes da pandemia e da guerra na Ucrânia, “transformaram uma desaceleração global em um declínio, com o desejado pouso suave parecendo improvável”.

Tempestade. A Alemanha tardou a controlar o preço do gás. A alta dos juros puxada por Powell, do FED, e Lagarde, do Banco Central Europeu, aumenta o risco de recessão – Imagem: Sanziana Perju/ECB e U.S. Federal Reserve

Assinado pela secretária-geral ­Rebeca Grynspan, o estudo da Unctad não recorre a meias palavras. “Em uma década de taxas de juro ultrabaixas, os BCs consistentemente ficaram aquém das metas de inflação e não conseguiram gerar um crescimento mais saudável. Qualquer crença de que eles serão capazes de derrubar os preços contando com taxas de juro mais altas sem gerar recessão é uma aposta imprudente”, ressalta.

Os aumentos das taxas de juro deste ano nos EUA deverão ter efeito devastador para a parte mais pobre do mundo. A Unctad calcula que essa elevação deverá cortar cerca de 360 bilhões de dólares em renda futura para os países em desenvolvimento, excluindo a China, e sinalizar ainda mais problemas à frente, alerta o relatório. Os fracassos das tentativas de manejo de crises com o uso de ferramental ortodoxo são visíveis, por exemplo, no recente abalo da economia da Grã-Bretanha, assim como na resistência de quase um ano da Alemanha em aceitar a adoção de um teto para os preços dos combustíveis, à véspera da chegada do inverno.

No mês passado, a libra caiu para seu menor patamar ante o dólar desde 1985. O movimento de queda da moeda britânica consolidou-se após a primeira-ministra Liz Truss, do Reino Unido, anunciar uma mistura de cortes de impostos, reduções acentuadas nos gastos públicos e taxas de juro mais altas. O pacote econômico chegou no momento de apoio crescente dos britânicos a mais investimentos, indústrias nacionalizadas e níveis mais baixos de desigualdade. A economista Daniela Gabor, professora da Universidade de West of England ­Bristol, considerou o aumento de juros como “um convite aberto para perturbações do mercado e instabilidade financeira”. Em meados deste mês, o governo britânico substituiu o ministro das Finanças e reverteu os principais pontos do plano. E Truss apresentou sua carta de renúncia na quinta-feira 20.

Os movimentos das políticas monetária e fiscal nas economias avançadas correm o risco de levar o mundo à estagnação

Na crise europeia do gás, adverte o Nobel de Economia Joseph Stiglitz, a precificação de custo marginal de negócios como de costume não funciona como os economistas gostam de pensar que funcionaria. Em artigo recente, ele recomenda uma combinação de um teto de preço para uma parte do consumo e preços de referência para o resto. Outros preços-chave, como alimentos e eletricidade, precisam também ser controlados, enquanto os governos têm de intervir para resolver a escassez. Uma taxação “de uma só vez” – windfall profits tax – sobre lucros inesperados devido à explosão de preços é necessária para distribuir o peso da crise.

Não por acaso, críticas ao combate ortodoxo à inflação e à condescendência dos governos em relação à responsabilidade dos monopólios no processo de alta de preços dominam boa parte da discussão da crise neste momento. Segundo Richard Kozul-Wright, diretor da Divisão de Estratégias de Globalização e Desenvolvimento da Unctad, “o verdadeiro problema enfrentado pelos formuladores de políticas não é uma crise de inflação causada por muito dinheiro e poucos bens, mas uma crise de distribuição com muitas empresas pagando dividendos muito altos, muitas pessoas lutando a cada mês pelo salário e muitos governos sobrevivendo a cada mês das receitas de títulos públicos”.

Inflação. Os governos europeus discutem a criação de um teto para o consumo essencial de energia e combustíveis – Imagem: iStockphoto

“É um erro pensar que uma situação de guerra pode ser vencida com uma economia em tempo de paz. Nenhum país jamais prevaleceu em uma guerra séria deixando os mercados em paz. Os mercados simplesmente se movem muito devagar para o tipo de grandes mudanças estruturais que são necessárias”, dispara Stiglitz. É por isso, diz, que os EUA têm a Lei de Produção de Defesa, promulgada em 1950 e invocada recentemente na “guerra” contra a Covid e para resolver uma crise de escassez crítica.

Aos poucos, soluções testadas historicamente começam a ser adotadas. No começo do ano, Weber e o economista ­Sebastian Dullien propuseram, na Alemanha, um esquema de preços para o gás que tinha mão dupla. Os consumidores receberiam uma certa quantidade de gás natural, suficiente para cobrir suas necessidades básicas, a um preço estabilizado e teriam de pagar preços de mercado por qualquer gás adicional que consumissem. A proposta foi endossada pelo Partido Social-Democrata da Alemanha e, hoje, o governo está criando uma comissão para avaliar esse teto de preço do gás para consumo essencial. Uma versão do esquema foi implementada para a eletricidade na Áustria. Outra tentativa na mesma direção, a Lei de Estabilização de Preços de Emergência, nos EUA, começou a ser discutida.

Hoje, o Brasil é o terceiro pior lugar do mundo para se trabalhar entre 150 países, segundo o Global Rights Index

O empurrão mais recente para uma recessão mundial foi dado, porém, pelos EUA, que anunciaram medidas para conter o rápido avanço da tecnologia chinesa e da inteligência artificial. Os novos controles são um grande golpe para as ambições de ciência e tecnologia, conclui ­Jordan Schneider, analista de China e tecnologia do Grupo Rhodium. Os novos regulamentos impedem que as empresas americanas exportem seus chips de Inteligência Artificial de ponta para a China e proíbe empresas e cidadãos dos EUA de ajudar as fábricas chinesas a desenvolver a produção de ponta para chips de lógica e memória. Segundo estimativas, cerca de 30% da produção industrial chinesa será afetada pelas novas restrições, o que significa um impacto de grandes proporções no resto do mundo, levando em conta que a China possui o principal setor industrial do planeta.

Há o risco de desencadeamento de uma série de crises financeiras em paí­ses emergentes e em desenvolvimento como Brasil, México, África do Sul, Índia, Nigéria e Egito, na esteira da provável recessão mundial, alertou semanas atrás o vice-presidente do Banco Mundial, Ayhan Kose. “O financiamento está se tornando mais escasso e caro à medida que os principais Bancos Centrais aumentam as taxas de juro para controlar a inflação. Os influxos de capital para os mercados emergentes estão diminuindo e os custos de empréstimos externos vêm aumentando”, alerta o economista ­Santiago Acosta-Ormaechea, do FMI. Segundo ele, as taxas de juro domésticas nos mercados emergentes estão subindo, pois seus Bancos Centrais têm elevado as taxas para combater a inflação, mas também devido ao apetite reduzido dos investidores por ativos de risco.

Disputa. As restrições dos EUA aos chips com tecnologia norte-americana devem afetar 30% da indústria na China – Imagem: iStockphoto

À exceção do remanescente volume de reservas cambiais acumulado pelo Brasil no governo Lula, a situação da economia apresenta elevada vulnerabilidade. O problema é ainda maior para os jovens. Hoje, o Brasil é o terceiro pior lugar do mundo para trabalhar entre 150 países, segundo o acompanhamento do Global Rights Index. O País ocupa a segunda posição mundial em quantidade de jovens sem trabalhar nem estudar. Uma pesquisa Datafolha mostrou que 76% dos jovens querem deixar o Brasil.

“Ainda há tempo de sair da beira da recessão. Temos as ferramentas para acalmar a inflação e apoiar todos os grupos vulneráveis. Esta é uma questão de escolhas políticas e vontade política”, pondera Rebeca Grynspan. “Mas o atual curso de ação está prejudicando os mais vulneráveis, especialmente nos países em desenvolvimento, e há o risco de levar o mundo a uma recessão global.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1231 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O mundo na ladeira “

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo