Economia

O Estado precisa superar o dilema sobre expandir ou não seus gastos

Entre as saídas: rever o pequeno alcance do imposto de renda e a tributação sobre ganhos de capital

Foto: USP Imagens
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Por Licio da Costa Raimundo


A crise aberta pelo surto da covid-19 explicitou dilemas que a sociedade brasileira carrega já há algum tempo e que permanecem, insepultos, a requerer uma solução. Um dos mais explícitos nesse momento é o que opõe a necessidade da execução de políticas que impliquem uma expansão dos gastos públicos e sua impossibilidade implícita, dadas as restrições e resistências à ampliação das proporções da dívida pública federal em relação ao PIB.

Para alguns, é imprescindível nesse momento que o Estado gaste sem restrições, pois o momento assemelha-se a um estado de guerra, portanto trata-se de um autêntico estado de exceção. Para outros, a expansão descontrolada dos gastos públicos nesse momento resultará em mais sofrimento à frente, dada a imperiosa necessidade da imposição de restrições hercúleas ao gasto no futuro, quando a crise for superada.

Para os que sustentam ser necessário gastar sem limites nesse momento, o argumento de que vidas estão em jogo é impositivo. Pensar em limitações de gastos em meio a uma crise de tão grandes proporções seria se conformar a normas mesquinhas, ditadas por aqueles que têm desprezo pela vida humana e que se preocupam mais em manter o valor de sua riqueza. Para os que levantam a questão da necessidade de restrições aos gastos, a preocupação com o pós–crise e com as conseqüências econômicas que um nível exorbitante de dívida trará constitui o centro de sua argumentação. Milhões de empregos podem ser perdidos quando as medidas restritivas necessárias começarem a tomar corpo. O Estado brasileiro encontra-se, assim, frente a sua esfinge: ele deve gastar, mas não pode gastar.

Bruno Théret mostra como é exatamente nos momentos de crise que a verdadeira natureza da moeda se explicita. É aí que aparecem com todas as cores as tensões que influenciam sua gestão e os interesses sociais que a cercam. A crise de 2008 mostrou claramente que a moeda é muito mais que apenas um meio de troca. A moeda é o objeto de desejo dos agentes econômicos. Sua posse tem o poder de diminuir a ansiedade em momentos de crise e de crescimento da incerteza. Frente à impossibilidade de rascunhar cenários futuros que contem com um mínimo de credibilidade, a moeda oferece aos agentes econômicos o porto seguro necessário para que se aguarde o surgimento de novas informações e para que se possa, com maior segurança, restabelecer convenções em relação ao futuro incerto.

Sendo assim, é extremamente lógico que, frente a um momento de elevada incerteza, os agentes privados posterguem suas decisões de gasto e, com isso, ainda que de forma involuntária, diminuam o ritmo de crescimento dos negócios e da própria economia como um todo. Nesses momentos, principalmente, a possibilidade de que o Estado gaste é questão sine qua non para que a própria economia volte a operar em níveis mais elevados de crescimento. Nesses momentos, a impossibilidade de expansão dos gastos públicos inevitavelmente condena a economia à estagnação e a sociedade à desagregação. Condenar o Estado ao equilíbrio fiscal permanente é manietar a sociedade de uma ferramenta essencial para a retomada e a manutenção do crescimento econômico.

Dessa forma, é absolutamente imprescindível nesse momento que o estado brasileiro empreenda medidas que, mediante a expansão brutal do gasto público, leve mais condições de assistência e cuidado a milhares de brasileiros que muito em breve se encontrarão sem condições de sobreviver ao vírus. Ao mesmo tempo, é imperioso que a elevação dos gastos fiscais restaure minimamente o nível de gasto agregado e sustente, assim, um patamar de crescimento do PIB que impeça a economia nacional de ingressar em uma recessão nunca antes imaginada.

Mas como fazê-lo sem que, passada a agonia da emergência, o país não mergulhe em um debate sobre como fazer os ajustes necessários à redução da relação Dívida/PIB? Como evitar que os proprietários da riqueza privada, residentes e não-residentes, que arbitram livremente com títulos da dívida e com a própria moeda nacional não imponham seu juízo aos incautos que permitiram tão grande expansão daquela relação?

Mais uma vez, vem à tona nessa crise as relações de força que cercam a gestão da dívida pública, sobretudo no que se refere às definições relativas às formas de financiamento da dívida. A tensão entre as forças que impedem a expansão da dívida pública e as forças que exigem sua expansão reflete uma tensão no próprio seio da sociedade sobre a estrutura de financiamento da Dívida Pública.

Explicita-se a necessidade de se repensar a estrutura tributária que financia os gastos públicos. Explicita-se, também, o fato de que frente à extrema liberdade de movimentação de capitais hoje existente no Brasil, os gestores de riqueza têm efetiva condição de punir a sociedade, mesmo frente a situações de emergência social. Caso queiram, tais gestores podem efetivamente promover uma exacerbação da volatilidade da taxa de câmbio e uma brutal elevação dos juros de longo prazo (fruto de maciça venda de títulos, sobretudo os de mais longo prazo,  que apresentam menor liquidez) e dos juros de curto prazo (os induzir a autoridade monetária a elevar a taxa diretora na tentativa de evitar uma fuga em massa de recursos dos mercados de títulos de dívida e de ações).

Evidencia-se nesse momento a puerilidade daqueles que entendem que não há limites de gasto e de endividamento para os países que imprimem sua própria moeda. A primazia da luta política e os limites da soberania do Estado mostram sua face da forma mais escancarada exatamente nos momentos de crise.

O Estado nacional precisa, nesse momento, superar o dilema entre o dever e o não poder expandir seus gastos. A única forma de fazê-lo é revendo princípios há muito estabelecidos, como o pequeno alcance das alíquotas do imposto de renda, a impossibilidade de elevação da tributação sobre ganhos de capital, a incidência fiscal sobre a distribuição de dividendos e sobre as grandes fortunas. Não fazê-lo é permitir, licenciosamente, que se agucem os conflitos sociais e que se ponha em risco a própria integridade da sociedade brasileira.

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