Economia

Ideologia e economia

Camufladas, as ideias do mercado manipulam opiniões e beneficiam poderosos

Interesses. As turbulências financeiras de 2008 deixaram claro que os economistas midiáticos defendem o sistema falido porque são pagos pelos bancos – Imagem: Redes sociais
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Em suas sempre oportunas digressões no site GGN, Luis Nassif cuidou de examinar um artigo escrito por pesquisadores de Cambridge. Evelyne Hubscher, Thomas Sattler e Marcos Wagner investigam as relações entre austeridade e polarização política.

O tema é crucial para a compreensão das relações entre política e economia, dirão alguns. Desconfio que a importância do tema transcenda essa visão e caminhe na direção do desvendamento das relações entre o poder das ideias e as ideias do poder.

O escritor italiano Marco D’Eramo publicou, em 2020, o livro Dominio, que trata das estratégias adotadas pelos empresários conservadores nos Estados Unidos para enfrentar a guerra das ideias. D’Eramo usa propositadamente a expressão guerra de ideias, e não debate de ideias. Ele justifica a escolha depois de analisar o manual da contrainteligência das Forças Armadas Americanas. Reza o manual: “A forma cultural mais importante para as forças Coin (contrainsurgência) é entender a narrativa… Narrativas são os meios pelos quais as ideologias são expressas e absorvidas pelos indivíduos em uma sociedade (…). Ouvindo narrativas, as forças Coin podem identificar o núcleo dos valores-chave da sociedade”.

Em sua obra-prima Ideologia e Utopia, Karl Manheim apostou na perenização do ambiente social, cultural e político que acompanhou a posteridade da Segunda Guerra Mundial. “Agora é bastante claro que somente em um mundo intelectual em rápida e profunda mudança as ideias e os valores, antes considerados fixos, poderiam ter sido submetidos a uma crítica minuciosa. Em nenhuma outra situação os homens poderiam estar suficientemente atentos para descobrir o elemento ideológico em todo pensamento. É verdade, é claro, que os homens lutara

m contra as ideias de seus adversários, mas no passado, em sua maioria, eles o fizeram apenas para se agarrar aos seus próprios absolutos de forma mais teimosa. Hoje, há demasiados pontos de vista de igual valor e prestígio, cada um mostrando a relatividade do outro, para nos permitir tomar qualquer posição e considerá-la inexpugnável e absoluta.”

As esperanças de Manheim foram derrotadas depois das escaladas neoliberais que avassalaram o mundo depois de Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Na era neoliberal, os “cientistas” empenhados em percorrer os labirintos da outrora denominada Economia Política refugiaram-se nas casamatas que enclausuram o conhecimento nas enxovias do saber absoluto.

Em delírio subpositivista, um economista do mainstream sugeriu que as narrativas (ideologias?) não podem desmentir os fatos, como se os “fatos” da vida social não fossem inseparáveis das narrativas sobre eles. Desgraçadamente para a matilha de cães raivosos que emitem latidos na Economia, os humanos formulam narrativas para configurar a “realidade’. Escravos da linguagem, os bípedes falantes estão sempre diante de uma disputa de narrativas, significados, até mesmo quando escolhem instrumentos de comprovação empírica dos fatos que pretendem narrar.

Um exemplo de procedimentos duvidosos pode ser encontrado na ideia de superávit fiscal estrutural que trata de eliminar os efeitos do ciclo econômico nas receitas do governo. Nesse procedimento estão embutidas ideias peregrinas.

Orsola Costantini, economista sênior do Institute for New Economic Thinking, expõe as hipóteses dos mercados a respeito do orçamento e das finanças públicas. Camufladas em uma aura técnica e científica, essas hipóteses são transformadas em ferramentas para garantir a permanente “tendência ao equilíbrio” da economia monetário-financeira capitalista.

Nas catacumbas do Orçamento Ciclicamente Ajustado repousa o conceito de equilíbrio. Esse é o conceito dominante na teoria econômica que obscurece a compreensão do capitalismo como economia monetário-financeira em permanente movimento.

O famigerado ajuste transformou-se em uma ferramenta para justificar cortes seletivos

Políticos e funcionários dos governos têm se valido do conceito de orçamento ciclicamente ajustado para limitar a disponibilidade de políticas que pareçam viáveis para a comunidade. Gestores públicos podem, dessa forma, evitar o aborrecimento de tomar responsabilidade política por suas escolhas: Nós temos de fazer! O orçamento determina!

Por rádio, televisão e jornal, as ­pessoas são “informadas” que precisam se sacrificar, aceitar cortes nos gastos sociais e menos direitos e benefícios trabalhistas, ou encarar a destruição da economia – tudo em nome da ciência econômica.

Caberia aqui, a menção a um episódio da história econômica que ilustra as consequências sociais da visão equilibrista. Vou me valer da narrativa de Hjalmar Schacht, o economista que coordenou a recuperação da economia alemã depois da trombada da Grande Depressão:

“A economia alemã estava mais uma vez no fundo do abismo, e mais de 6 milhões de desempregados corriam pelas ruas em busca de sustento, prontos para seguir um guia providencial que os tirasse da miséria. Quando penso no chanceler Brüning, fico atordoado! Mostrou, mais uma vez, uma compreensão da situação que desafiava a inteligência, ao escolher este momento para acentuar ainda mais a sua política de deflação, preocupado com seu único objetivo: alcançar a todo o custo um equilíbrio nas finanças públicas! Ele, provavelmente, queria que o país morresse, mas com boa saúde… Felizmente, Hindenburg acabou demitindo Brüning, a quem o povo havia apelidado de ‘o chanceler da fome’. Era maio de 1932. Tarde demais, o estrago estava feito”.

O estrago provocado pela austeridade do equilibrista Brüning resultou na ascensão do Partido Nacional-Socialista nas eleições de 1933. Convidado para retomar o comando da economia, ­Hjalmar Schacht refletiu:

“Se houver fábricas não utilizadas, máquinas não utilizadas e estoques não utilizados, também deve haver capital não utilizado. Mobilizar esse capital com empréstimos (ao governo) seria um empreendimento sem esperança. A confiança pública na capacidade do Estado foi prejudicada por governos anteriores ­(Schacht faz menção aos temores despertados pela hiperinflação de 1922/23). Eu tinha, portanto, de encontrar uma maneira de mobilizar esse capital jacente nos depósitos e nos bolsos onde ele estava guardado, sem esperar que ele continuasse parado por muito tempo ou pudesse perder o seu valor. A partir desse pensamento surgiu o esquema que mais tarde se tornou conhecido como Mefo-Bills (Letras Mefo)”. •

Publicado na edição n° 1286 de CartaCapital, em 22 de novembro de 2023.

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