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Devaneios macroeconômicos

Sacerdotes do Copom sugerem risco de superaquecimento

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O dinheiro é encaixotado a golpes de martelo no trinômio que abriga os “fundamentos” das teorias novo-clássicas: naturalidade, racionalidade e equilíbrio – Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR
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A ata do Copom veio à luz no dia 27 de junho. Entre tantos ensinamentos, selecionei o Versículo 19 da Ata Sagrada. O Senhor disse: “As Minhas ovelhas ouvem a Minha voz” (João 10:27).

A ata do Copom reza:

“A avaliação predominante foi de que a continuação do processo desinflacionário em curso, com consequente impacto sobre as expectativas, pode permitir acumular a confiança necessária para iniciar um processo parcimonioso de inflexão na próxima reunião. Outro grupo mostrou-se mais cauteloso, enfatizando que a dinâmica desinflacionária ainda reflete o recuo de componentes mais voláteis e que a incerteza sobre o hiato do produto gera dúvida sobre o impacto do aperto monetário até então implementado”.

A menção ao hiato do produto suscitou pregações a respeito da taxa de juros neutra.

Nas catacumbas dessa homilia rastejam os Modelos Dinâmicos Estocásticos de Equilíbrio Geral. Nesse abrigo de crentes (crédulos?) habita o Produto Potencial, uma construção inobservável que se propõe a definir as trajetórias dessa Enteléquia que abriga em seu tabernáculo o pleno emprego – descontada a taxa de desemprego “natural” –  e a inflação dentro da meta.

O “hiato do produto” – a diferença entre o PIB real e a Enteléquia inobservável – é o indicador da posição cíclica da economia: quando o hiato é positivo, diz-se que a economia está superaquecida; um hiato negativo assinala a subutilização de recursos econômicos.

Neste momento, os sacerdotes do Copom sugerem riscos de aquecimento da economia, ou seja, de o hiato tornar-se perigosamente positivo. A taxa real neutra garante a trajetória de “equilíbrio” da economia observável. Equilíbrio garantido pelas bênçãos do Produto Potencial.

O demônio da dúvida está sempre à espreita. Willem Buiter, ex-membro do Comitê de Política Monetária do Banco da Inglaterra e ex-economista-chefe do Citigroup – hoje professor-visitante na Universidade Colúmbia – apontou as armas da crítica aos ensinamentos dos porta-vozes do Senhor:

“A maioria das inovações teóricas macroeconômicas mainstream desde a década de 1970, a revolução das expectativas racionais dos novos clássicos associada a nomes como Robert E. Lucas Jr., Edward Prescott, Thomas Sargent, Robert Barro etc., e a teorização neokeynesiana de Michael Woodford e muitos outros revelaram-se distrações autorreferenciais, voltadas para si mesmas, na melhor das hipóteses. A pesquisa tende a ser motivada pela lógica interna, capital intelectual protegido e quebra-cabeças estéticos de programas de pesquisa estabelecidos, em vez de um desejo poderoso de entender como a economia funciona – muito menos como a economia funciona em tempos de estresse e instabilidade financeira”.

Em artigo recente, o apóstata de Colúmbia escreve: “Quando uma crise de liquidez de mercado e/ou de financiamento ocorre num momento em que a inflação está acima da meta, a tensão entre os objetivos dos Bancos Centrais – estabilidade de preços e estabilidade financeira – é inevitável. Nesses casos, penso que a estabilidade financeira deve estar em primeiro lugar, porque é uma condição prévia para a prossecução efetiva da estabilidade dos preços… O conflito entre os objetivos da estabilidade de preços e da estabilidade financeira deve ser administrável utilizando a taxa do Banco Central para visar a inflação e utilizando a dimensão e a composição do seu balanço como instrumentos de política macroprudencial para visar a estabilidade financeira”.

A maioria das inovações teóricas mainstream revelaram-se distrações autorreferenciais

Diante dos sucessivos episódios de convivência conflituosa entre os dois objetivos da política monetária, a teoria econômica dos novos-clássicos e dos impropriamente ditos neokeynesianos entrega-se a um exercício esfalfante de neutralização do conflito. O dinheiro é encaixotado a golpes de martelo no trinômio que abriga os “fundamentos” das teorias novo-clássicas: naturalidade, racionalidade e equilíbrio. Já disse um incréu: para quem só tem martelo, tudo é prego.

Nessa perspectiva, o dinheiro não pode ser admitido como um objeto que polariza o desejo e obriga os indivíduos racionais e utilitaristas a decisões “pecaminosas”: desejar o dinheiro como um passo para ganhar mais dinheiro. É inadmissível um objeto que absorve em si mesmo toda a “utilidade” e, assim, compromete as condições da escolha racional.

A insistência em naturalizar o dinheiro e transformá-lo em um mero intermediário choca-se com a formação dos sistemas monetários-financeiros governados pelo crédito e pelos mercados de avaliação dos direitos de propriedade – sob a forma de ações e títulos de dívida.

Gerado ao longo de vários ciclos de dinheiro de crédito, esse estoque de ações e títulos de dívida é avaliado diariamente nos mercados organizados. Essa avaliação depende fundamentalmente das expectativas dos agentes do mercado que flutuam conforme as ondas de otimismo e pessimismo ou, se quiserem, conforme a alternância entre a ganância e o medo.

Na perspectiva novo-clássica, o dinheiro, como Pilatos no Credo, é desnecessário. Desnecessário porque a utilização dos recursos disponíveis entre o consumo presente e o consumo futuro (investimento) se dá na órbita da economia real governada pela escolha racional dos indivíduos.

O indivíduo investidor-empreendedor abstém-se de tomar seu Primitivo, poupa recursos de sua vinícola para investir mais goles de sua preciosidade daí a cinco anos. Assim, o investidor realiza a Teoria da Abstinência do inefável Nassau Sênior.

A poupança prévia é acumulada sob a forma de depósitos e mobilizada pelos bancos, meros intermediários entre poupadores e “gastadores”. As operações de crédito são remuneradas pela taxa natural (neutra) de juros e apenas redistribuem as posições entre credores e devedores, refletindo as distintas preferências entre consumo presente e consumo futuro (investimento).

A dívida de A é o crédito de B: os balanços transformam-se simetricamente. Não haveria a possibilidade de uma “crise de crédito” provocada por uma diabólica capacidade dos bancos de criar moe­da e promover a alavancagem excessiva. O dinheiro serve apenas para lubrificar as transações na economia real e o crédito permite a transição suave entre a poupança e o investimento. •

Publicado na edição n° 1266 de CartaCapital, em 05 de julho de 2023.

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