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O plano de investimentos do governo mira maior autonomia econômica e política do País

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Retomada. Em visita a Pernambuco, o presidente Lula anunciou 8 bilhões de reais em investimentos na Refinaria Abreu e Lima – Imagem: Ricardo Stuckert/PR
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Rotulado por financistas e obscurantistas de vários matizes como um retorno a erros do passado, o conjunto de iniciativas do governo para aumentar os investimentos produtivos, preservar o mercado doméstico e valorizar os trabalhadores foi, contudo, praticado antes, com enorme sucesso, nos Estados Unidos e em outros países e pavimentou o caminho para a ampliação e o fortalecimento da classe média, o desenvolvimento tecnológico e o progresso econômico e social. As ações governistas inscrevem-se ainda na tendência mundial ao aumento da autonomia produtiva das economias nacionais, em uma reação aos fracassos da globalização e aos problemas gerados pela pandemia da Covid-19, guerra na Ucrânia e aumento dos conflitos no Oriente Médio.

As iniciativas incluem o investimento de 8,6 bilhões de reais na Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, a retomada das obras do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, a aceitação dos sindicatos como interlocutores e participantes de decisões do governo, a taxação de importações de carros elétricos chineses e o empenho na indicação do ex-ministro da Fazenda Guido Mantega para o Conselho da Vale.

Acrescente-se, com destaque, o lançamento, na segunda-feira 22, de uma nova política industrial, com 300 bilhões de reais de financiamento, 250 bilhões só via BNDES, direcionados a ações orientadas por missões de interesse público e associadas à descarbonização, digitalização, exportação e aumento da produção. Desacostumada a interpretar os fatos por uma ótica que não seja a dos interesses do sistema financeiro, a mídia viu a nova política pública como simples reedição do que não deu certo, negou-se a cotejar as medidas do plano brasileiro com iniciativas idênticas tomadas pelos governos dos EUA e de países europeus e ignorou a contrariedade dos setores que ganham com as importações daquilo que o País poderia produzir internamente, caso contasse com uma política industrial eficaz.

Os estados administrados por bolsonaristas abriram mão do poder de arbítrio e de cancelamento de concessões

As decisões de Brasília parecem ter como fio condutor o fortalecimento de um contraponto à iniciativa privada, esfera que no Brasil detém uma liberdade quase sem limites. As iniciativas parecem remeter, ou ao menos ter pontos de contato, à construção de um contrapoder para compensar a força das corporações gigantes e do setor financeiro, nos termos daquilo que o renomado economista estadunidense John Kenneth Galbraith definiu como countervailing power, essencial para criar espaço à reforma da economia nos EUA, nas primeiras três décadas após a Segunda Guerra Mundial. A alternativa evidente à concorrência, ressalta Galbraith em American Capitalism: The Concept of Countervailing Power, é a regulação ou o planejamento público.

A revelação, em estudo realizado pela organização internacional Oxfam, de que a privatização de empresas públicas é uma das principais causas do aumento mundial da desigualdade, uma aberração que no Brasil se configura descomunal, e a necessidade imperiosa de cada país assegurar a sua própria segurança energética mais que justificam o investimento do governo na Abreu e Lima e a retomada das obras do Comperj. Um movimento de fortalecimento do investimento e da produção interna, de produtos e de serviços, tem importância decisiva para restringir, no País, o poder das concessionárias de energia elétrica de provocar, impunemente e de modo sistemático, catástrofes no Rio Grande do Sul, em São Paulo e no Rio de Janeiro, entre outros estados, além de tragédias urbanas e humanitárias que não terão fim enquanto o Estado, nas suas esferas nacional, estaduais e municipais, continuar a abrir mão do poder de arbítrio e de cancelamento de concessões. Nesses três estados, governados por políticos com aversão a qualquer interferência na liberdade das empresas privadas, mesmo quando estas descumprem de modo flagrante contratos de concessão de serviços públicos, não há solução à vista, ao menos até as eleições para governador. Não bastasse, circulam previsões sobre o risco de novos colapsos, de abrangência nacional, como desdobramentos dos cortes profundos de pessoal, entre outros danos, provocados com a privatização, no governo anterior, da Eletrobras, em uma operação classificada por Lula na quinta-feira 18 como “um escárnio”.

Opções. Os cortes de energia se agravam. O programa de submarinos reemerge. E a produção nacional de carros elétricos será protegida – Imagem: Rovena Rosa/ABR, BYD Brasil e Marinha do Brasil

A evidência numérica mais recente dos desastres provocados pela privatização sem critério, a não ser aquela do ganho financeiro imediato de particulares, é o resultado de um levantamento realizado pela Associação dos Engenheiros da Petrobras, que aponta um prejuízo colossal para o País, de 100 bilhões de reais, com a venda de ativos da Petrobras subavaliados durante a gestão do ex-presidente da companhia Pedro Parente. A retomada das obras nas áreas de refino permitirá reduzir a sangria de divisas para pagar a importação de 14,7 bilhões de litros de diesel apenas em 2022.

A combinação da extinção gradual da isenção para importação de veículos elétricos associada à instalação de montadoras chinesas no Brasil inscreve-se no movimento do governo rumo a maior autonomia produtiva e uso de componentes produzidos no País, com geração de empregos domésticos e arrecadação. O mesmo princípio se aplica ao plano de retomada, no Programa de Aceleração do Crescimento, do investimento de 94 bilhões de reais até 2026, em transporte ferroviário, que, sem a produção local de componentes, máquinas e vagões, seria apenas outro gerador de lucros privados, nacionais ou estrangeiros, destituído do importante mecanismo de difusão de benefícios públicos por meio da multiplicação de investimentos produtivos na economia doméstica.

Os estragos provocados pela escalada do poder privado incluem o massacre midiático de Lula

Ao anunciar a retomada dos investimentos na Abreu e Lima, Lula chamou atenção para o complô do Departamento de Justiça dos EUA com juízes e procuradores brasileiros que atuaram na Lava Jato, entre eles Sergio Moro e Deltan Dallagnol, para impedir o sucesso da Petrobras. O presidente Lula apontou os danos provocados a ele próprio, encarcerado injustamente para garantir a vitória do seu opositor, e à economia do ­País, pela Operação Lava Jato. A Justiça reconheceu a parcialidade de Moro, afastado do cargo e hoje ameaçado de cassação do mandato de senador, assim como os desvios de conduta de Dallagnol e outros procuradores, flagrados em manejo indevido de recursos de multas aplicadas à Petrobras e encaminhados pelos EUA ao Brasil. Entre inúmeros danos e injustiças, a Lava Jato interrompeu o programa nuclear brasileiro e prendeu o almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, maior cientista nuclear do País. A retomada, pelo atual governo, do Prosub, programa de construção de submarinos, um deles com propulsão nuclear, faz parte da restauração do poder do Estado, de se contrapor ao quase monopólio da esfera privada no País desde o golpe parlamentar de 2016.

A relação de estragos provocados pela escalada do poder privado sem controle inclui o massacre midiático de Lula pela defesa, em 2009, contra a visão do então presidente da Vale, Roger Agnelli, da necessidade de a companhia agregar valor nas exportações, reduzidas à venda de minério bruto, principalmente para a China. A movimentação atual do presidente para Mantega integrar o conselho de administração da mineradora faz parte da estratégia de contrapoder estatal ao poder sem limites do setor privado.

Para todos os lados. O novo plano diretor de São Paulo elimina limites à construção e ameaça a mínima organização da cidade – Imagem: GOVSP

Em estados e cidades administrados pelo bolsonarismo, além da liberdade total para provocar catástrofes concedida às concessionárias de energia, a população assiste ao avanço sem limites dos grandes incorporadores imobiliários, caso de São Paulo, que, com a maioria da Câmara e a prefeitura alinhadas ideologicamente ao ex-presidente, tem como única proposta de urbanização a verticalização sem freio, com o risco de tornar a metrópole definitivamente inabitável, também para a classe média, em padrões minimamente civilizados. Um destino que associações de moradores e abalizados técnicos e gestores públicos se esforçaram para mudar, na Lei de Zoneamento aprovada há uma semana, mas só obtiveram ganhos irrisórios diante do poder avassalador dos grandes proprietários de imóveis.

A recomposição, ainda que parcial, da estrutura de refino da Petrobras é uma reparação dos estragos de uma privatização que teve como único resultado a oferta, ao consumidor final, da gasolina e do diesel mais caros do País, e o aumento dos lucros dos novos proprietários. Em Pernambuco, Lula anunciou, como parte do PAC, investimento de 8,6 bilhões de reais na Abreu e Lima, com geração de 30 mil empregos e aumento da produção de diesel em 40%. Entre as mais modernas das Américas, essa refinaria produzirá 13 milhões de litros de diesel S10 por dia e, em um ano, pagará todo o investimento. No Recife, Lula lançou ainda o programa Autonomia e Renda, da Petrobras, para oferecer cursos profissionalizantes a cidadãos em situação de vulnerabilidade econômica e a construção da Escola de Sargentos, com investimento de 1,7 bilhão e geração de 12 mil empregos diretos. Na Bahia, anunciou a criação do Parque Tecnológico Aeroespacial e investimentos de 650 bilhões para construir a Base Aérea de Salvador.

A privatização de refinarias teve como únicos efeitos a oferta mais cara e  aumento dos lucros dos novos donos

A construção de um contrapoder do Estado, ressalta Galbraith no livro ­American Capitalism: The Concept of Countervailing Power, é crucial para compensar os poderes das corporações gigantes e do setor financeiro e criar espaço à reforma da economia.  Durante as primeiras três décadas após a Segunda Guerra Mundial, os EUA constituíram a maior classe média e a democracia mais dinâmica, com cuidados de saúde subsidiados (Medicare e Medicaid) e enorme expansão da educação pública. “A democracia estava a caminho de fazer o capitalismo funcionar para a grande maioria”, ressalta Galbraith, mas depois veio uma gigantesca reviravolta, em grande parte “cortesia” de Ronald Reagan. A desregulamentação, a privatização, a globalização e a hipertrofia das finanças criaram fábricas e comunidades abandonadas, salários estagnados, aumento da desigualdade, uma classe média em declínio, corrupção política e apoio social fragmentado. A típica família norte-americana vive hoje de salário em salário, e mais de uma em cada seis crianças é pobre. Ao mesmo tempo, uma parcela recorde da riqueza nacional subiu para o topo e concentra-se cada vez mais. O avanço neoliberal restaurou os privilégios e o domínio dos ricos, destruindo a base produtiva erguida pela industrialização, transferida para a Ásia, e oferecendo a parcelas crescentes da população a gestão da pobreza e da miséria em lugar do combalido Estado de Bem-Estar Social.

O economista Robert Reich, ex-ministro do Trabalho dos EUA e discípulo de Galbraith, destacou em artigo a importância da formulação do seu mentor. A partir do New Deal e estendendo-se pelas primeiras três décadas após a Segunda Guerra Mundial, o governo federal criou centros de poder econômico que compensaram o poder das grandes empresas e de Wall Street. A seguir, alguns exemplos:

1. Os sindicatos pressionaram e obtiveram legislação em 1935 que legitimou a negociação coletiva e, depois, nas décadas seguintes, construíram uma força econômica e política sobre essa base.

2. Os trabalhadores não organizados ganharam poder econômico sob a forma de legislação sobre o salário mínimo.

3. Os pequenos agricultores obtiveram apoio federal aos preços, bem como voz na definição da política agrícola. As cooperativas agrícolas, assim como os sindicatos, obtiveram isenção das leis federais antitruste.

4. Os pequenos comerciantes foram protegidos contra as cadeias varejistas por meio de leis estatais de “comércio justo”, exigindo que os atacadistas cobrassem o mesmo preço a todos os retalhistas e evitando que as cadeias rebaixassem as cotações dos preços. Ao mesmo tempo, as redes varejistas foram autorizadas a ­unir-se em organizações nacionais, para contrabalançar o poder de mercado significativo dos grandes fabricantes.

5. Os pequenos investidores ganharam proteção ao abrigo das leis de Valores Mobiliários contra o poder dos grandes investidores e dos principais executivos empresariais.

6. Os pequenos bancos foram protegidos contra Wall Street por regulamentos que proibiam a atividade bancária inter­estadual e separavam a atividade bancária comercial da de investimento. •

Publicado na edição n° 1295 de CartaCapital, em 31 de janeiro de 2024.

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