Economia

A moeda sul-americana e a luta pela soberania

Acelerar a integração regional pela moeda é, em algum grau, lutar pela soberania contra aqueles que habitam na cúspide do sistema

Foto: Governo do Paraguai
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Ao observar o debate inflamado sobre a proposta levantada por Fernando Haddad e Gabriel Galípolo em artigo para a Folha de S. Paulo, notei existirem duas categorias de reflexão: àquelas que deveriam ser impressas em papel marrom, como a de Alexandre Schwartsman no InfoMoney e a de José Casado em Veja; e àquelas que se propunham à crítica rigorosa e propositiva como a de Ricardo Carneiro, acompanhado de Rafael Bianchini em CartaCapital.

Arriscarei considerações aos pontos centrais da proposta e suas implicações, deixando os aspectos técnicos para a posteridade. Proponho acompanhar a discussão em quatro atos, esperando levar a imaginação do leitor ao confortável ambiente de um teatro.

O primeiro será dedicado a discutir a questão da soberania monetária que salta às vistas na contribuição de Haddad e Galípolo. O objetivo da criação de uma moeda sul-americana, colocam ambos, é: “acelerar o processo de integração regional, constituindo um poderoso instrumento de coordenação política e econômica para os povos sul-americanos”.

O termo “aceleração” supõe um esforço rumo à integração regional que requer uma série de condições, das quais a união monetária seria o último passo a ser alcançado: a integração comercial, acompanhada de plena mobilidade da mão de obra entre países; a integração produtivo-tecnológica; a integração financeira; e, finalmente, a união monetária.

Acelerar a integração, partindo da união monetária, significaria pular etapas. Ainda assim, conforme admitem os autores, a tarefa é complicada. De fato. Não por pular as etapas esculpidas pelos apóstolos do livre-câmbio, mas pelos limites políticos que tangenciam as questões da soberania e da hegemonia político-militar, tecnológica e monetária.

Como ensinou João Manuel Cardoso de Mello, a hegemonia nos espaços da política e da economia global é demarcada pela detenção: das armas, das tecnologias e da moeda do mundo.

O posto hegemônico é ocupado pelos EUA desde o pós-Segunda Guerra, que exigem ter e exibir seu poder sobre os demais países. Não faltaram demonstrações de força e intervenções violentas e ilegítimas. Os EUA trataram de repartir o mundo entre os defensores da liberdade (sobretudo para os mercados) e seus inimigos –  os que ousaram adotar formas de organização social diferentes do “american way”.

No plano tecnológico-industrial, exportaram seu padrão de desenvolvimento para o mundo até que o domínio da finança sobre a produção repartisse o mundo entre produtores e detentores da tecnologia. A “ralé” periférica produz, a matriz da grande-empresa inova e faz dinheiro.

Entretanto, como relembram Haddad e Galípolo, é no plano monetário que as garras da hegemonia norte-americana arranham a superfície do mundo. Em defesa do dólar, os EUA lançaram mais de uma vez a economia mundial à bancarrota. “Defender o dólar” passou a ser sinônimo de defesa da ordem capitalista global. Essa mesma ordem que produz desigualdades sociais e regionais de cara limpa, entendidas como efeitos colaterais do progresso.

Em um momento de questionamento da hegemonia norte-americana, a proposta afiançada por Haddad e Galípolo supõe passos em direção à soberania. Integrar é fortalecer a soberania dos países periféricos. Fortalecer, por seu turno, representa desenhar a própria rota de desenvolvimento ao invés de comprar o sonho dos mais poderosos.

As sanções contra a Rússia provaram ser mais penosas do que se imaginava. Há, ainda, a perda de competitividade da indústria americana, acompanhada pela competição tecnológica e comercial com a China, o gigante que a globalização “by american” ajudou a criar. Não se trata, portanto, de uma oposição ao dólar, mas de um posicionamento em bloco face às novas configurações geopolíticas e econômicas.

Na trilha sem percurso pronto da integração regional, a união monetária representa graus de autonomia em relação aos distúrbios endogenamente gerados pelas assimetrias monetárias entre os países com moeda conversível e os países incapazes de negociar os termos de comércio e de financiamento “fora de casa”.

As condições para o sucesso da moeda sul-americana são, sobretudo, políticas. Para aqueles que acreditam no livre curso de capitais, como se poder e dinheiro fossem corpos habitantes de dimensões distintas, não custa lembrar a frase do mestre Belluzzo: “moedas não são bananas”. A moeda, no plano mundial, é uma condição de poder e de soberania, estabelecida por uma convenção social que impõe a força do poder sobre o subalterno.

Acelerar a integração regional pela moeda é, em algum grau, lutar pela soberania contra aqueles que habitam na cúspide do sistema, os detentores do dinheiro que, desde a crise da dívida nos anos 1980, fazem dos trópicos o destino de verão para o “dinheiro que caça rendimentos”.

Os críticos do “papel marrom”

As críticas de Alexandre Schwartsman e José Casado exigiram a polidez de um pugilista que, ao encontrar o adversário tombado no ringue, se nega ao último punch.

Schwartsman atribui à ideia de Galípolo e Haddad um “antiamericanismo juvenil”, de quem estaria ignorando os textos sagrados de Robert Mundell e Milton Friedman. Também menciona as complicações encontradas pela Zona do Euro durante a crise europeia em 2011-12.

Começando por Mundell. Demonstrar a inviabilidade de uma integração monetária que desrespeite a plena mobilidade de trabalho e capital, a flexibilidade de preços e salários e não ofereça compensações entre países deficitários e superavitários e ciclos semelhantes nos ritmos de expansão e contração econômica é o mesmo que demonstrar a identidade de Euler pela pura beleza, atribuindo dinâmica ao impávido.

A otimização eficiente de Mundell para o comércio intra-bloco monetário considera todos os fatores econômicos relevantes para uma economia composta por quitandas. Dentre os comerciantes, tudo é transacionável.  A plena utilização dos fatores de produção é garantida. Pena que nessa união monetária “perfeita” esqueceram de inventar o dinheiro!

Na entrevista citada pelo economista adorador do dinheiro-banana, Milton Friedman afunda mais ainda o barco salva-vidas de Schwartsman. Seguindo Mundell, o Chicago Boy, dispara: “[no caso do mercado monetário comum], o mais provável é haver choques assimétricos (de preços e salários) cujo único mecanismo de ajuste seja fiscal, ou o desemprego”. Ou seja, se a realidade não se dobrar à teoria, fogo na aldeia!

Ao atribuir desencantos adolescentes à proposta da SUR, Schwartsman retoma a crise da Zona do Euro em 2011-12 como contraprova de que mesmo uma integração lenta, gradual e segura pode falhar, que dirá os atropelos causados por uma aceleração via união monetária.

Abro aspas, faltando-me caracteres para fazer jus às palavras citadas: “Em suma, mesmo depois de cinco décadas de acordos, reformas, crises cambiais, crises políticas etc., o euro, como construção institucional, se mostrou despreparado para lidar com eventos de 2011-12. Como resultado, sua adoção precipitada por pouco não reverteu décadas de penosa construção institucional. Apesar disso, os autores acreditam que podemos literalmente botar o carro na frente dos bois e partir para integração monetária sem ter cuidado de nenhum dos passos anteriores”.

Para o ex-diretor do BC, a Europa fez pouco e fez mal em matéria de integração, penando na crise e jogando o entulho dos desequilíbrios financeiros sobre a Grécia. A título de lembrança, o Banco Central Europeu deixou a Grécia quebrar, antes de amealhar anteparos na operação da Troika. Mais ainda, foi a ausência de um fundo de estabilização financeiro que acentuou os desequilíbrios que deflagraram a crise da dívida dos periféricos europeus. Caso os austeros do BCE tivessem comprado os títulos soberanos dos países em dificuldade, o risco crescente de default persistiria? Pergunte para os operadores das rodadas de Quantitative Easing!

Trazendo Casado para a conversa, o antiamericanismo que tanto ele, quanto Schwartsman acusam, evoca o mesmo sentimento de um navegador que ao chegar ao bojador se assusta e volta entornando a nau: a proposta da SUR, tal como formulada por Haddad e Galípolo, não atira contra o americanismo, mas contra os desequilíbrios causados pela chamada hegemonia monetária. Propor alternativas a um sistema monetário internacional assimétrico é avistar que, além do bojador, existe a primazia da soberania monetária para o desenvolvimento econômico e social.

Se, para os escritores do papel marrom, o dólar é a banana mais madura do cacho, o americanismo é a bananeira (um poder natural sobre os rumos do capitalismo ocidental). Cortar a banana madura apodrece sua árvore e, daí por diante, as criaturas monstruosas que estão além do bojador os engole.

Os comentários de Carneiro-Bianchini

Nesta Carta, os economistas Ricardo Carneiro e Bianchini se propõem a analisar três questões essenciais sobre a proposta da SUR: os problemas operacionais de uma moeda digital como a proposta no artigo; se o SUR pode de fato ser um instrumento de aceleração da integração numa região de baixa integração comercial, produtiva e financeira; e se não haveria instrumentos mais eficazes ou, no caso do financiamento, menos demandantes de reservas – como por exemplo, bancos regionais ou fundos soberanos?

A dupla concebeu uma análise crítica e detalhada, da qual me apropriarei em parte. Investigando a SUR a partir das funções clássicas da moeda como unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor, Carneiro-Bianchini começam pela hipótese da SUR como uma espécie de clearing, uma moeda de pagamento entre os Bancos Centrais que comporiam a união monetária:

“Com esta configuração, o SUR deveria funcionar como moeda de clearing ou meio de pagamento entre os bancos centrais da região, realizando as compensações que antes eram feitas pelo dólar, ou seja, na prática o SUR seria um substituto do dólar. Esta substituição seria vantajosa apenas se o BCSUR tivesse capacidade de ampliação de emissões fiduciárias para além do seu capital inicial, ou seja, dependeria da sua incerta alavancagem.”

Na proposta de Galípolo e Haddad, o capital inicial do Banco Central sul-americano seria composto por aportes pelos países-membros proporcionais a sua participação no comércio regional. A capitalização suplementar se daria pela cessão de divisas cambiais conversíveis, ou imposto na exportação para fora do bloco. A substituição do dólar como meio de pagamento intra-regional depende certamente da capacidade de alavancagem do BCSUR. No entanto, como admitem Carneiro e Bianchi, o financiamento multilateral via Banco de Desenvolvimento Latino Americano (CAF) e Banco de Compensações Internacional (BIS) poderia amenizar distúrbios no sistema de pagamento. Lanço a bola para a inclusão do Banco dos BRICS para a formação de um sistema de financiamento multilateral, tendo em vista a forte relação comercial do Brasil, em maior grau, com os demais países-membros.

Acrescento que: com acúmulo de recursos vindos de impostos sobre exportação, e sobre a entrada e saída de capitais especulativos “de fora do bloco”, o “inominável” controle de capitais, evitar-se-iam oscilações tanto entre a SUR e as moedas nacionais, quanto entre a SUR e as demais moedas conversíveis. (Questões levantada na proposta de Haddad-Galípolo).

Quanto à capacidade de emissão fiduciária da SUR, prossegue a dupla de comentadores: “A partir das funções clássicas da moeda e suas interações contraditórias pode-se afirmar que faltaria ao SUR uma dimensão mais desenvolvida de reserva de valor. Para que tal acontecesse a integração regional deveria estar mais avançada, ou seja, tanto o comércio em SURs quanto a denominação das relações de débito e crédito deveriam estar mais disseminadas e aprofundadas de modo a que houvesse um incentivo a carregar SURs nos portfólios privados”.

O trecho acima esclarece a dificuldade de conexão entre as funções de meio de pagamento e reserva de valor, visto que o estímulo à demanda por moeda necessitaria de um potencial emissor capaz de “forçar” o curso da SUR na denominação de contratos comerciais e financeiros intra-bloco, afastando o risco de dolarização das economias.

Ademais sobre a possibilidade de a SUR assumir a função de moeda de conta, admitem os debatedores do Observatório de Economia Contemporânea: “Aqui cabe destacar o fato de que as taxas de câmbio flutuantes das moedas domésticas com o SUR não eliminam das relações financeiras o currency mismatch. Ou seja, tomar empréstimos em SURs implica risco cambial, o que constitui uma importante desvantagem ante o sistema financeiro denominado exclusivamente em moeda doméstica. Ademais, se de fato o SUR for adotado parcialmente em certos países, convivendo com a moeda doméstica, muito provavelmente se ampliará a volatilidade típica dos sistemas bi-monetários”.

Essas evidências invocam o risco de desequilíbrios cambiais na ausência de uma moeda conversível intermediária, capaz de cessar as disparidades entre a demanda pela moeda regional e a demanda por moeda local. Isso nos traz de volta o risco da dolarização das moedas locais. Uma alternativa seria a limitação do uso da SUR pelos Bancos Centrais Nacionais, o que atrasaria a estratégia de integração a despeito de maior segurança contra as oscilações vindas de dentro e de fora do bloco. Outra saída seria a atuação dos BC’s nacionais em conjunto com o BC sul-americano “limpando” o excesso de demanda por moeda local através da concessão de títulos compromissados em SUR’s aos BC’s nacionais (?).

Embora seja incerta a capacidade inicial de um Banco Central sul-americano operar como emprestador em última instância, seu mecanismo de compensação entre países superavitários e deficitários reduz o risco de desequilíbrios financeiros, componente faltante na crise do Euro. Entretanto, para que a viabilidade da SUR seja robusta, a capacidade de atuar na “antevisão” de crises de financiamento é essencial, necessitando que, para além do mecanismo de compensação, exista coerência entre os regimes fiscais dos países integrantes do bloco. Ao invés de regras “teto” para o gasto e o endividamento, a criação de “corredores” de financiamento para compra de títulos soberanos com graus crescentes de risco deve ser acompanhada de regras multilaterais de regulação dos sistemas financeiros: um “glass-steagal act” nos trópicos, para ser mais exato.

A discordância que trago aos comentários de Ricardo Carneiro e  Rafael Bianchini reside na avaliação sobre a prematuridade da união monetária como aceleradora da integração regional, visto que alegam: “O SUR, pelo desenho proposto, tenderia a ser um simulacro do dólar e, portanto, agregaria pouco aos limites impostos pela atual arquitetura monetária e financeira internacional e dominância do dólar à operação das moedas periféricas”.

Fato que as modificações na “arquitetura monetária e financeira internacional” são de caráter incerto e o dólar continuará, até onde temos conhecimento, imperando como reserva de valor par excellence do mundo capitalista. Contudo, a emergência da soberania monetária como aporte para o desenvolvimento econômico e social dos países sul-americanos exige coragem política para encarar o desafio.

Não podemos deixar que o jogo dependa do dono da bola. Nas escoras da hegemonia monetária, de qualquer origem, as assimetrias reinarão, travando a soberania das sociedades sobre seu próprio destino, sobre políticas que levem ao pleno emprego; e, ainda, continuarão a embalar crises ao sabor dos que usufruem dessas assimetrias para concentrar riqueza. As lutas pela soberania concorrem para o fim das hegemonias e a partilha, em paz, do progresso técnico e dos meios de subsistência.

Nas palavras do mestre Keynes: “as dificuldades estão não na aceitação de novas ideias, mas sim, em escapar das antigas ideias que se encontram ramificadas em cada canto dos nossos pensamentos”.

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