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A bomba dólar: sanções monetárias e desglobalização da Rússia

O conflito na Ucrânia foi uma oportunidade para os EUA colocarem em prática novas regras do jogo para o cenário internacional

Joe Biden e Vladimir Putin. Fotos: AFP
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A invasão da Ucrânia pela Rússia começou em 24 de fevereiro de 2022. Em resposta, os Estados Unidos impuseram severas sanções monetárias e econômicas ao país agressor. Com isso, acionava-se, mais uma vez, o principal artefato militar desenvolvido pelos EUA no século XXI: a “bomba dólar” [1].

Trata-se de nova arma capaz de promover a ampla desconexão de um país do sistema financeiro internacional. Os EUA podem colocá-la em movimento sem precisar da cooperação de aliados, mobilizando para isso apenas algumas dezenas de funcionários de seu Departamento do Tesouro. Essas equipes, por sua vez, usam a centralidade do sistema financeiro americano e a regulação financeira em vigor ao redor do mundo para conscrever as instituições que operam nesse setor. A bomba dólar foi bem-sucedida todas as vezes em que foi acionada, porém sua aplicação até agora havia se restringido a um número pequeno de economias, todas de menor porte e pouco expostas ao sistema financeiro internacional.

O caso do Irã é bastante ilustrativo do impacto da nova arma. Entre agosto de 2018, quando as sanções foram impostas, e janeiro de 2020, quando estourou a crise da Covid, a inflação local passou de menos de 10% para mais de 50% ao ano. A taxa de câmbio no mercado paralelo saiu de pouco mais de 40.000 ryals por dólar e chegou a quase 200.000 ryals. Houve ainda uma contração de mais de 13 pontos percentuais do PIB. Os efeitos sobre os mercados locais de crédito e de capitais também foram devastadores. Em resposta, o governo foi obrigado a intensificar o uso de mecanismos de controle de danos, tais com a centralização do câmbio e das operações financeiras e comerciais com o exterior.

A bomba dólar apresenta uma característica singular como artefato bélico. É impossível que outras potências – aliadas ou inimigas – consigam replicá-la. Difere, assim, das duas principais inovações militares do século XX – a bomba atômica americana e o Sputnik russo. Ambas puderam ser emuladas pela potência rival em alguns poucos anos.

A exclusividade dos EUA sobre a bomba dólar não decorre de inovações materiais, mas advém da militarização do poder proveniente do papel central que sua moeda desempenha no sistema global. Trata-se de um diferencial institucional que foi construído pelos EUA ao longo dos últimos cem anos [2]. Na prática, os outros países não têm condições objetivas para promover, com o uso da sua moeda, a substituição do papel global desempenhado pelo dólar.

A centralidade da moeda americana decorre do fato de todos os atores econômicos relevantes, não importa o país em que residam, precisarem administrar um fluxo de caixa nessa unidade de conta. O dólar denomina muitas de suas obrigações relevantes e recorrentes de pagamentos, que, pelos riscos envolvidos, necessitam estar “casadas” (hedgeadas) com receitas futuras ou ativos, que também estejam nessa mesma moeda.

Para realizar essa administração, esses agentes precisam comandar a todo momento uma quantidade de dólares igual ou superior à requerida por seus pagamentos. Caso contrário, estarão sujeitos a penalidades fortes, que podem chegar à extinção (falência). Esse é um dos princípios gerais de ordenamento das economias capitalistas, que foi denominado por Hyman Minsky de “Restrição de Sobrevivência”[3].

Para auxiliá-los nesse gerenciamento, o mercado financeiro disponibiliza uma variedade de serviços. Essa engrenagem inclui desde sistemas de pagamentos até seguros, passando por mercados de ativos, que está denominada em moeda americana e tem sua estabilidade sistêmica resguardada pelo Fed. Esses elementos formam a base operacional e institucional de sustentação da centralidade do dólar no sistema financeiro internacional.

A aplicação da bomba dólar contra a Rússia apresenta diferenças na sua aplicação com relação às experiências que a antecederam. Até então, essa arma havia sido sempre aplicada de forma escalonada, procurando gerar uma asfixia crescente da economia do adversário. Entretanto, no caso da Rússia, medidas de grande impacto sistêmico foram impostas desde o início. Seu banco central foi sancionado e US$ 300 bilhões do total de US$ 640 bilhões das reservas internacionais do país foram congelados. Entretanto, a despeito dessas medidas extremas, os EUA mantiveram em operação vários dutos financeiros da Rússia com o exterior.

Essa aparente contradição mostra que as potências ocidentais estão buscando minimizar os efeitos (blowbacks) de curto prazo que o bloqueio das exportações de matérias-primas da Rússia teria sobre a operação de alguns países e setores estrategicamente relevantes da economia internacional, como energia e agricultura. Na verdade, a Rússia é muito mais integrada ao mundo global em termos comerciais, financeiros e industriais do que os países que até então haviam sido alvo da bomba dólar.

Em resposta, o Kremlin foi obrigado a introduzir controle de capitais e de comércio exterior, elevar sua taxa de juros de 10% para 20% ao ano e fechar as bolsas de valores, enquanto o rublo sofria uma desvalorização de 50% em pouco mais de 10 dias. Entretanto, para surpresa de muitos e diferentemente do que aconteceu com outros países que também foram alvo da bomba dólar, os russos conseguiram reverter rapidamente a queda do rublo (Ver Figura).

Figura. Variação do rublo frente ao dólar

Fonte: Financial Times

O uso da taxa de câmbio do rublo como indicador do sucesso das medidas adotadas pelas potências ocidentais pode levar a conclusões erradas. Diferentemente do Irã, a Rússia, mesmo sob sanções, continua, por enquanto, a receber um volume elevado de dólares e euros em troca de suas exportações de petróleo e gás. Na prática, o superávit corrente em moeda estrangeira da Rússia tenderá a aumentar nos próximos meses diante da redução das importações e do controle de câmbio que foi imposto. Entretanto, o PIB do país, mesmo assim, deverá se contrair na casa dos dois dígitos.

Outra diferença marcante da aplicação da bomba dólar à Rússia são suas implicações geopolíticas. O país possui um exército considerável no cenário europeu e conta com o segundo maior poderio atômico do mundo. Ademais, trata-se de um país que vem abertamente desafiando a ordem global imposta pelos americanos, pelo menos desde o discurso de Putin em Munique em 2007 em que denunciou a unipolaridade dos EUA e a expansão da Otan.

Os dirigentes americanos também vêm, há algum tempo, manifestando sua insatisfação com relação à ordem global, que teria permitido o fortalecimento de potências rivais, como a Rússia e particularmente a China. Estes países estariam adquirindo condições de se antagonizar com o hegemon. Essa preocupação foi ilustrada na literatura acadêmica recente, sob o título de “Dilema de Tucidides(Thucydide´s Trap). No caso, o dilema entre Esparta e Atenas na Guerra do Peloponeso na Grécia antiga estaria se repetindo entre a China e os EUA[4]. No entanto, essa mesma linha de pensamento pode ser analogamente estendida à Rússia. Estamos, portanto, assistindo a duas ações em choque que contestam o ordenamento global tal como conhecíamos, uma russa e outra americana.

Desse ponto de vista, o conflito na Ucrânia foi uma oportunidade para os EUA colocarem em prática novas regras do jogo para o cenário internacional. Assim, as sanções em tela são medidas de longo prazo que serão mantidas mesmo que nos próximos meses se alcance um acordo de paz. Está em curso um processo que visa a redesenhar os fluxos de comércio, de investimentos e de capitais nas próximas décadas. Como afirmou Janet Yellen, Secretária do Tesouro dos EUA, em palestra proferida no dia 13 de abril de 2022:

“Não podemos deixar que países usem sua posição de mercado em matérias-primas, tecnologias e produtos relevantes como um poder para perturbar nossa economia ou gozar de uma vantagem geopolítica indesejada. Por esses motivos, vamos construir e aprofundar a integração econômica  (…) com os países com os quais podemos contar”[5].

O uso do dólar como arma militar não deverá comprometer sua centralidade. Pelo contrário, seu uso contra a Rússia deve ser visto uma nova forma de reafirmação da hegemonia americana. Trata-se, de certa maneira, de fenômeno análogo ao que foi descrito por Maria da Conceição Tavares em seu ensaio de 1986[6], quando tratou da retomada do poder e da moeda americana nos anos 1980. Desde 1944, os EUA foram sempre ciosos em manter o controle sobre as regras do jogo das finanças internacionais. Não faz sentido comprometerem o poder monetário estrutural[7] que a centralidade do dólar lhes garante. Trata-se de uma vantagem estratégica da qual nenhum país em sã consciência abre mão e que nenhum outro ator internacional tem hoje condições de contestar.

Clique e saiba mais sobre o Observatório da Economia Contemporânea no site do Instituto de Economia da Unicamp

[1] Torres, E. (2021!) Paz, Moeda e Coerção no Século XXI in Fiori, J. (org..) Sobre a paz. Petrópolis, Editora Vozes

[2] Torres, E (2014) A Crise do sistema financeiro globalizado contemporâneo. Revista de Economia Política, vol. 34, n. 3, p. 433-450, jul-set.

[3] Torres, E (2020)  Minsky: moeda, restrição de sobrevivência e hierarquia do sistema monetário globalizado. Economia e Sociedade, vol. 29 n. 3, p. 737-760, dez.

[4] Ver Allison G. (2015) The Thucydides Trap. Are the U.S. and China Headed for War? The Atlantic, 24 de setembro.

[5] Yellen, J 2022 Transcript: US Treasury Secretary Janet Yellen on the next steps for Russia sanction and ‘friend-shoren’ supply chains. The Atlantic Council

https://www.atlanticcouncil.org/news/transcripts/transcript-us-treasury-secretary-janet-yellen-on-the-next-steps-for-russia-sanctions-and-friend-shoring-supply-chains/

[6] Ver Tavares (1985) A retomada da hegemonia norte-americana. Revista de Economia Política, Vol. 5 No. 2

[7] Ver Strange, S. (1994). States and Markets, Continuum

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