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A economia do mercadismo

A sabedoria tosca que tenta imobilizar o governo Lula só conjuga o verbo cortar

Alavanca. Entre as condições financeiras e monetárias que deflagraram a Revolução Industrial, a dívida pública se destaca como uma das forças mais poderosas – Imagem: Pintura: Karl Eduard Biermann (1847)
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Na revista Veja, a senhora Neuza Sanches nos oferece uma obra-prima da sabedoria econômica abrigada nos embornais dos mercados. Neuza informa os leitores: “O governo de Luiz Inácio Lula da Silva prevê encerrar o primeiro ano de mandato com um rombo de 177,4 bilhões de reais nas contas públicas, uma piora em relação à estimativa anterior e ainda longe da meta traçada pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda), de entregar um déficit de até 1% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2023”.

Aqui vai a argumentação nuclear dos sabichões do Paleolítico: “ O déficit fiscal pode resultar no aumento do desemprego, já que o governo precisa economizar em algumas áreas para pagar os débitos. Isso pode levar a uma redução na oferta de trabalho e, consequentemente, um aumento do desemprego. O déficit fiscal pode reduzir o Produto Interno Bruto (PIB) do País, pois o governo precisa economizar em áreas importantes de investimento para pagar os débitos. Isso pode levar a uma redução no PIB. Enfim, não há milagres. Quem gasta mais do que recebe – todo assalariado sabe disso –, fica devendo. E paga juros exorbitantes por essas dívidas. Não é diferente no caso do governo, cujo discurso de controle de gasto ainda é visto com desconfiança por boa parte do mercado financeiro”.

A mensagem é simples: se não há dinheiro, corte seus gastos. A palavra rombo é expelida no rosto do público como perdigotos contaminados pelos venenos criados nas retortas dos alquimistas do mercado.

Depois do Coronavírus, o neuronavírus tem revelado enorme potencial de letalidade intelectual. A opinião pública tem sido submetida a um insidioso processo de contaminação. Os especialistas e os comentaristas da mídia repetem, incansáveis, os mantras do corta, corta, corta. A tosca sabedoria dos mercados pretende imobilizar o governo Lula.

Paul Krugman ensinou em sua coluna do New York Times: “Uma economia não é uma família endividada. Nossa dívida (privada) consiste principalmente de dinheiro que devemos uns aos outros; ainda mais importante, nossa renda provém principalmente de vender coisas uns aos outros. Seu gasto é a minha renda e meu gasto é a sua renda. Assim, o que acontece se todo mundo reduzir gastos simultaneamente, a fim de reduzir suas dívidas? Resposta: a renda cai”.

As insuficiências da concepção exarada por dona Neusa chegaram a tais absurdos que suscitaram reações no ambiente ortodoxo. Ao tratar da austeridade, o ­estudo do FMI Neoliberalism: Oversold? indica: a elevação de impostos ou do corte de gastos para reduzir a dívida pode ter um custo muito maior do que a mitigação do risco de crise prometido por sua redução. É preferível a eleição de políticas que permitam a redução do porcentual da dívida, diz o FMI, “organicamente pelo crescimento”.

Segundo o estudo, as políticas de austeridade não só geram substanciais custos ao bem-estar pelos canais da oferta, como também deprimem a demanda e o emprego. A noção de que a consolidação do orçamento pode ser expansionista (isto é, aumenta o crescimento e o emprego), por elevar a confiança do setor privado e o investimento, não se confirmou na prática. Na média, a consolidação de 1% do PIB eleva a taxa de desemprego em 0,6% no longo prazo, e o coeficiente de Gini (concentração de renda) em 1,5% dentro de cinco anos.

Keynes encontrou a negação dessas superstições no desempenho das economias centrais durante os 30 anos gloriosos do imediato pós-Guerra. Esse período foi marcado por uma virtuosa e estável relação entre gasto fiscal, endividamento público e privado e taxas de crescimento. Esse arranjo favoreceu o crescimento dos lucros e dos salários reais, em consonância com os ganhos de produtividade, elevando as receitas fiscais dos governos e estimulando o investimento das empresas.

Depois do coronavírus, o neuronavírus tem revelado enorme potencial de letalidade intelectual

Os níveis de endividamento do setor privado e do setor público, como proporção do PIB, evoluíram satisfatoriamente porque as taxas de crescimento elevadas da renda das famílias, dos lucros das empresas e das receitas fiscais dos governos permitiam resultados positivos nos balanços patrimoniais de empresas, famílias e governos.

Um certo Karl Marx investigou o papel da dívida pública na criação das condições financeiras e monetárias que deflagraram a Revolução Industrial. “A dívida pública torna-se uma das alavancas mais poderosas da acumulação. Como com um toque de varinha mágica, ela infunde força criadora ao dinheiro estéril e o transforma, assim, em capital…

Na realidade, os credores do Estado não lhe dão nada, pois a soma emprestada se converte em títulos da dívida, facilmente transferíveis, que, em suas mãos, ­continuam a funcionar como se fossem a mesma soma de dinheiro vivo. Porém, ainda sem levarmos em conta a classe de rentistas ociosos assim criada e a riqueza improvisada dos financistas que desempenham o papel de intermediários entre o governo e a nação, e abstraindo também a classe dos coletores de impostos, comerciantes e fabricantes privados, aos quais uma boa parcela de cada empréstimo estatal serve como um capital caído do céu, a dívida pública impulsionou as sociedades por ações, o comércio com papéis negociáveis de todo tipo, a agiotagem, numa palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia.

Desde seu nascimento, os grandes bancos, condecorados com títulos nacionais, não eram mais do que sociedades de especuladores privados, que se colocavam sob a guarda dos governos e, graças aos privilégios recebidos, estavam em condições de emprestar-lhes dinheiro. Por isso, a acumulação da dívida pública não tem indicador mais infalível do que a alta sucessiva das ações desses bancos, cujo desenvolvimento pleno data da fundação do Banco da Inglaterra (1694).

Não demorou muito para que esse dinheiro de crédito, fabricado pelo próprio banco, se convertesse na moeda com a qual o Banco da Inglaterra concedia empréstimos ao Estado e, por conta desse último, pagava os juros da dívida pública. Não lhe bastava dar com uma mão para receber mais com a outra: o banco, enquanto recebia, continuava como credor perpétuo da nação até o último tostão adiantado. E assim ele se tornou, pouco a pouco, o receptáculo imprescindível dos tesouros metálicos do país e o centro de gravitação de todo o crédito comercial. À mesma época em que, na Inglaterra, deixou-se de queimar bruxas, começou-se a enforcar falsificadores de notas bancárias. •

Publicado na edição n° 1290 de CartaCapital, em 20 de dezembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A economia do mercadismo’

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