Diversidade

Gillette coloca a masculinidade no fio da navalha

Comercial da empresa de barbear que referencia a campanha #MeToo recebe elogios e, ironicamente, o abuso típico da masculinidade tóxica

Menino demonstra vulnerabilidade em comercial que fala sobre "masculinidade tóxica"
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A mais recente campanha publicitária da Gillette inaugura uma mudança radical no posicionamento da marca. Por anos o slogan do icônico gigante da indústria da remoção de pelos foi The best a man can get, que em tradução literal seria O melhor que um homem pode obter, e que no Brasil ficou Sua melhor imagem. No comercial lançado esta semana o chamado de 30 anos foi substituído por The best men can be (O melhor que os homens podem ser).

O vídeo promove alguns conceitos importantes sobre masculinidade para uma audiência composta por homens. Em uma montagem com trechos de reportagens sobre o movimento #MeToo, clipes de machismo da ficção e da vida real, e cenas gravadas especialmente para o anúncio onde homens interferem em situações tóxicas, o narrador provoca: é a isso que aspiram?

Há um salto qualitativo entre um e outro ideal de aspiração, e entre o bonitão viril no espelho e os caras que interpelam violência, há bastante diferença simbólica.

Estudos de gênero e mídia há muito criticam a publicidade pela reprodução de estereótipos desumanizantes. As linguagens da publicidade, feitas para serem lembradas, também carregam ideologia – não é à toa que o epicentro da série Mad Men, uma sublime exploração da masculinidade branca nos EUA da década de 1960, seja uma agência.

Oliviero Toscani, que com a Benetton foi precursor do anúncio como crítica social, em 1995 declarou que “a publicidade é um cadáver que nos sorri” – mas é inegável que siga servindo de palco para experimentações com discursos sobre diversidade e inclusão.

Marcas que empregam essa estratégia o fazem por responsabilidade social? Ou por acompanharem tendências e perceberem que novas alas de velhos nichos de mercado estejam dispostas a abrir mão de conceitos em processo de obsolescência? Essas questões importam. É claro que é ingênuo supor que estratégias de marketing formem a linha de frente das lutas por equidade. Mas é também míope negar que elas causam impacto.

Em seu website, a Gilette declara saber que marcas influenciam a cultura, e anuncia uma iniciativa ampla de promoção de versões mais saudáveis de masculinidade, comprometendo-se a permear toda sua comunicação com estes ideais, bem como financiar com $1m anuais ONGs que educam homens para serem referências mais positivas.

Centrar um posicionamento na percepção crítica da masculinidade como chave de problemas sociais é importante, assim como é imenso que o fabricante de lâminas tenha sintetizado alguns de seus elementos mais tóxicos para recomendar que consumidores os abandonem.

Uma das principais pautas feministas é a violência masculina, e é formidável que a marca tenha chamado seu próprio público alvo para a responsabilidade, e a partir do nosso movimento de maior visibilidade sobre isso. (Mas não deixa de ser engraçado que seja justamente o titã da depilação quem pareça estar querendo formar inusitada aliança com o feminismo.)

A Gillette pôs a navalha na carne da sociedade, e importa entender de onde vieram os muitos elogios e, mais ainda, os chiliques e ameaças de boicote à empresa. Do sempre afiado humor feminista, a lembrança: se homens não aguentam sequer um chamado para prestarem mais atenção no próprio comportamento, que o comercial ao menos os ajude a perceber o volume de tutela não-requisitada a que somos sistematicamente submetidas – e não só pela publicidade.

Que uma marca do porte da Gillette peite a masculinidade tóxica, gerando debate nas redes sociais, no mesmo período em que trogloditas misóginos são eleitos presidentes, e muito devido às redes sociais, não é pouca coisa.

‘O melhor que os homens podem ser’

A masculinidade é um projeto de poder, e como tal sua sustentação requer a manutenção de suas simbologias – e não há dúvida a respeito de quais simbologias de masculinidade Donald Trump e Jair Bolsonaro fazem uso. Um já declarou que mulheres devem ser “agarradas pela xoxota”, outro que são frutos de “fraquejadas” – e isso para citar apenas duas das barbaridades que ambos propagam com abandono.

Nas simbologias que construíram muitos dos caminhos de quem hoje ocupa assentos do poder institucional, gênero figurou como categoria central de disputa. Mas das respostas à sugestão de que mulheres devem ser belas, recatadas e do lar até ao movimento #EleNão, no Brasil são as mulheres quem realmente formam a linha de frente desse embate. Da nossa parte não faltaram alerta sobre o machismo e misoginia que se arvoraram na política de anos recentes.

Independentemente do ângulo com o qual enquadramos a conjuntura – avanço da extrema-direita, recrudescimento do neoliberalismo, conservadorismo religioso ou, para as mais céticas, a volta dos que não foram – é bastante óbvio que são patriarcais os valores que a moldaram. E o valor mais fundamental desta cena é a submissão das mulheres.

A expressão “masculinidade hegemônica” define o conceito como um conjunto padronizado de práticas (e não apenas de expectativas, ou como identidade) que, embora não sendo estatisticamente dominante, certamente é normativo. (Connell e Messerschmidt, 2005)

Em outras palavras, a masculinidade hegemônica não é necessariamente encarnada por um ou outro sujeito, mas sim uma espécie de norte ideológico para todos. A manutenção da ideologia da masculinidade hegemônica requer que tratemos seus elementos mais tóxicos como “naturais”. É daí que o descaso conferido a questões de violência masculina, e não apenas contra mulheres, simboliza com força a manutenção da ordem social em que homens mandam e mulheres obedecem.

Podemos ver de forma positiva a entrada de simbologias mais progressistas sobre masculinidade, mesmo elas sendo propostas por uma multinacional? Se, como urge Rancière, não esquecermos que o material da política é o simbólico, em tempos de homens altamente tóxicos regendo nações o posicionamento novo da Gillette, com o chamado direto que faz para que homens questionem a própria toxicidade, é muito bem-vindo.

É beneficial para toda a humanidade que a masculinidade seja posta no fio da navalha.

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