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Um protesto tímido e poético

Nascida e criada na roça, a autora baiana Luciany Aparecida aposta no fantástico como um caminho para gritar contra injustiças

Um protesto tímido e poético
Um protesto tímido e poético
Mata Doce, passado em um quilombo, é o primeiro romance assinado pela autora sem pseudônimo – Imagem: Ana Reis
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Mata Doce, título do romance da escritora baiana Luciany Aparecida publicado no fim do ano passado, é também como se chama o quilombo fictício, na Bahia, em que está ambientado o livro. De lá vem a história da personagem Maria Teresa, que muda de nome conforme vai se transformando: é adotada por uma mulher cis e outra transgênero, tem trabalhos manual e intelectual, encontra o amor de sua vida e depois o ódio.

Também a autora varia a assinatura de seus livros. Luciany já foi Ruth ­Ducaso e talvez volte a sê-la, mas, no momento, decidiu pôr seu nome real, seu corpo e sua alma nas capas e no miolo dos livros.

A autora concedeu entrevista a Luciany Aparecida diretamente de Porto Alegre, onde se encontrava para mais um evento de lançamento de Mata Doce.

CartaCapital: Você é da área rural do Vale do Rio Jiquiriçá, interior da Bahia. Como esse lugar a influencia e a literatura que você faz?
Luciany Aparecida: Influencia na percepção do sensível. Nascer e ser criada numa comunidade rural te abre possibilidades para diferentes visões do mundo. A natureza te apresenta isso. Ser do Charco amplia meu campo semântico. Escrevo a palavra “rosa” tendo como imagens muitas coisas, e não apenas uma flor. Viver no campo é também estar mais próxima de encontros com o mistério. Nem tudo saberemos explicar sobre os ventos, as chuvas, a aparição de um pássaro novo no terreiro, e está tudo bem.

CC: Mata Doce é seu primeiro livro assinado com o nome Luciany Aparecida. Por que e como se deu essa mudança?
LA: Criei a assinatura Ruth Ducaso como um projeto estético-político, com o qual eu escreverei três livros para discutir temas como o racismo e o machismo, além de estabelecer, na escrita, uma aproximação entre gêneros literários. Mas vieram o cenário político brasileiro, a pandemia, o desemprego… e comecei a me questionar sobre o que poderia fazer de modo mais efetivo, inclusive para sobreviver. A resposta foi escrever de modo mais direto, e mais fantástico, em uma encruzilhada entre realidade, fantasia e oralidade. Quis colocar meu corpo, meu nome e meu presente em diálogo com o agora. Daí recuperei livros que já vinha rabiscando e segui nesses projetos. Um deles foi Mata Doce.

CC: A epígrafe do livro é um verso de Consolo na Praia, de Carlos Drummond de Andrade: Mas tens um cão. O verso logo acima diz Não possuis casa, navio, terra e, mais abaixo, outro diz murmuraste um protesto tímido. Seu romance é “um protesto tímido” contra injustiças, como a agrária e a racial?
LA: Amo esse poema. Uma pessoa da roça parece entender mais sobre a solidão da vida. O que é a literatura, senão um protesto tímido? O que uma mulher como eu, afro-brasileira, baiana, nordestina, da roça, pode dizer ao cenário da nossa literatura, senão em forma de protesto tímido? Nesse jogo de vozes acontece de, em algum momento, sermos ouvidas, como uma assombração. Então, Mata Doce é um protesto tímido, sim, mas tão assombroso que talvez possa gritar cochichos antirracistas ou a favor da reforma agrária no ouvido de um ou de outro.

CC: Ainda sobre a epígrafe: ela menciona um cão e antecipa a personagem Chula, uma cadela. Ao contrário da talvez mais conhecida cadela da literatura brasileira, Baleia, de Vidas Secas, ela não morre e parece ter uma existência metafísica. Há um diálogo entre Chula e Baleia?
LA: Sim! Li Graciliano Ramos com paixão, a obra completa. Sabia de cor trechos de São Bernardo. Fiquei encantada pelo refinamento da estrutura das frases dele. Aquilo se aproxima da poesia e isso me agrada muito. A personagem Chula me ajudou a construir a narrativa, a compor o deslocamento de tempo do livro, porque ela é um elemento fantástico inserido numa realidade dura, cruel e pesada. É um eco direto a Graciliano.

Mata Doce – Luciany Aparecida. Alfaguara (304 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon

CC: Outra referência explícita é o romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. Por que esse livro em particular?
LA: Me sinto contemporânea de Maria Firmina, ainda que não sejamos do mesmo século. Somos contemporâneas porque é como se nós, mulheres, ainda estivéssemos disputando um lugar de possibilidade na literatura. Num Brasil estruturalmente machista e racista, o texto dela segue a ser contemporâneo. Ela foi abolicionista, escrevendo histórias cujos personagens são escravizados e falam em primeira pessoa. Para a personagem principal de Mata Doce, uma mulher negra que trabalha e precisa encontrar tempo para escrever, Úrsula torna-se uma referência – porque ela está se entendendo como narradora.

CC: Há em Mata Doce uma harmonia consistente entre a maioria dos personagens – harmonia de gêneros, religiões, gerações etc. Num país tão dividido, é possível acreditar em harmonia?
LA: Acredito que sim, num lugar de esperança. Acho que a harmonia está em Mata Doce como um desejo. Para seguirmos vivas e vivos no Brasil, tão marcado por diferenças e violências, a gente precisa ter esperança. Estou aqui, hoje, dando esta entrevista, porque minhas antepassadas tiveram esperança. Acreditaram ser possível fugir do cativeiro e sair de opressões patriarcais e chegar a um lugar de liberdade. E é importante que não nos desconectemos do desejo de convivência. Gosto de pensar o mundo a partir da Bahia, porque na Bahia há um movimento que é quase uma dança de sobrevivência: o diálogo. O diálogo, às vezes, é perigoso, porque pode te aproximar demais do discurso do opressor. Mas se a Bahia, que é, por excelência, o lugar onde se implantou uma estrutura opressora, consegue desconstruir, na medida do possível, essa estrutura, ela tem muito a nos ensinar. •

Publicado na edição n° 1302 de CartaCapital, em 20 de março de 2024.

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