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Um mártir da ciência

A magistral biografia na qual se baseia o filme Oppenheimer disseca a injustiça histórica cometida contra o inventor da bomba atômica

Jovem brilhante, ele era emocionalmente frágil – Imagem: Departamento de Energia/EUA
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Albert Einstein tinha ­opiniões claras sobre ­Robert Oppenheimer. “Lá vai um narr (bobo)”, ­observou, em 1954. ­Einstein acabara de passar uma hora tentando convencê-lo a renunciar à Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos. Era preferível abandonar o cargo, argumentou Einstein, a enfrentar um tribunal humilhante para responder a acusações de que ele representava um risco à segurança.

As tênues conexões de Oppenheimer com o Partido Comunista nos anos 1930 voltaram a assombrá-lo nos 1950, sob ­McCarthy. O físico, que dirigiu o projeto da bomba atômica dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, foi intimado a prestar contas de seu comportamento anterior e de suas antigas associações. “Não dê legitimidade a esse processo venenoso: abandone seu cargo e seu país”, insistiu Einstein.

Mas Oppenheimer recusou e, para alegria de seus inimigos, enfrentou o tribunal e perdeu sua clearance – o certificado de segurança para informações secretas. E assim, um cientista que dedicou a vida ao serviço público foi tachado de traidor por evidências que equivaliam a boatos. “Os instintos de Einstein estavam corretos e o tempo mostraria que os de ­Oppenheimer estavam errados”, afirmam Kai Bird e Martin J. Sherwin, em Oppenheimer – O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano, lançado no Brasil na esteira do filme (ler texto à pág. 51).

OPPENHEIMER – O TRIUNFO E A TRAGÉDIA DO PROMETEU AMERICANO. Kai Bird e Martin J. Sherwin. Tradução: George Schlesinger. Intrínseca (640 págs., 99,90 reais)

A revogação da clearance surpreendeu os Estados Unidos. Esta foi uma tragédia de “riqueza shakespeariana”, afirmou o Washington Post. A Life anunciou que ele era “um dos homens mais famosos do mundo, um dos mais admirados, citados, fotografados, consultados, glorificados, quase deificado – então, de repente, a glória se foi e ele se foi também”.

Oppenheimer continuou, no entanto, sendo uma figura pública. A perseguição transformou-o em mártir científico, um Galileu do século XX, papel que desempenhou com perfeição até morrer, aos 62 anos, de câncer na garganta, em 1967. A esta altura, ele havia adquirido status de ícone. Livros, filmes, peças de teatro, artigos e até mesmo uma ópera, Doctor ­Atomic, garantiram que sua sombra fosse “gravada cada vez mais nitidamente nas páginas da história americana e mundial”, escrevem os autores.

Certamente, muito foi escrito sobre Oppenheimer, mas nada chega perto da empreitada titânica desses dois autores de delinear seu personagem e colocá-lo sob uma perspectiva histórica e política. Gigante entre as biografias, o livro é fruto de uma pesquisa que incluiu dezenas de entrevistas com amigos e parentes, visitas a dezenas de arquivos e bibliotecas e a reunião de milhares de cartas, memorandos e documentos do governo. Só o FBI, que grampeou obsessivamente Oppenheimer durante duas décadas, forneceu 10 mil páginas de transcrições.

Dessa avalanche de material os autores extraem pepitas reveladoras, combinando-as de maneira muitas vezes emocionante, noutras comovente e, ocasionalmente, chocante. Embora a história do julgamento, por exemplo, seja apresentada com cuidado discreto, seria insensível um leitor que deixasse de sentir pena do físico e profunda inquietação, se não repulsa, pelas forças alinhadas contra ele.

Nascido em 22 de abril de 1904, ­Robert Oppenheimer foi o primeiro filho de uma família de ricos imigrantes judeus alemães. Logo se mostrou um estudioso brilhante, um linguista talentoso, um bom poeta e um estudante de ciência que optou pelo curso de Física em Harvard. No entanto, também era um jovem emocionalmente frágil, afligido por crises de depressão.

Foi em Göttingen, na Alemanha, então um importante centro mundial de física teórica, que mergulhou no estudo da mecânica quântica. Na volta aos EUA, foi convidado para ajudar a criar uma escola de física teórica em Berkeley.

Oppenheimer deixou o cabelo crescer, deu festas, adotou causas liberais e se misturou com líderes e políticos de esquerda. Essas conexões, que arruinariam sua vida, eram vistas como meras excentricidades nos liberais anos de ­Roosevelt. Inclusive, não foram uma barreira para sua escolha como líder do projeto Los Alamos, criado no planalto do Novo México, para construir uma bomba atômica antes dos nazistas.

Einstein chamava o cientista de “bobo” pelo fato de ele ter aceitado participar do julgamento em que seria triturado

Oppenheimer forneceu então orientação paciente para um conjunto maluco de cientistas que variavam do mal-humorado e recalcitrante Edward ­Teller, que sonhava em construir uma poderosa bomba de hidrogênio de megatons e desdenhava do projeto de bomba de meros quilotons de Oppenheimer, ao travesso Richard Feynman, cuja ideia de diversão era arrombar os cofres do exército e vasculhar os seus segredos.

Mas vieram Hiroshima e Nagasaki. Inicialmente, Oppenheimer foi cauteloso em seus comentários sobre o bombardeio atômico de alvos civis, mas depois o denunciou. “Usamos armas atômicas contra um inimigo que estava essencialmente derrotado”, escreveu no Bulletin of the Atomic Scientists, em 1946. Quando alguns de seus colegas se envolveram na construção de dispositivos cada vez mais destrutivos, ele resistiu. Estas não eram armas de guerra, mas de genocídio, queixou-se.

Seus inimigos conspiraram então para dobrá-lo, em uma campanha que teria profundas repercussões. Sua humilhação destruiu para sempre a ideia de que cientistas poderiam oferecer conselhos como filósofos públicos. Além disso, ficou claro que o militarismo total dominaria a vida americana, levando à corrida armamentista na Guerra Fria.

Quanto a Oppenheimer, a figura que emerge da biografia é um boêmio intelectual bastante afável, que fumava quatro maços de cigarro por dia e preparava famosos dry martinis. Ele era vaidoso, compassivo, sábio, pretensioso, erudito, liberal, humano, ocasionalmente cruel e totalmente dedicado à vida pública. A forma injusta pela qual foi tratado por seu país é, de alguma forma, compensada por esta magistral biografia. •

Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.


GANHA-GANHA HOLLYWOODIANO

Vendendo a imagem de obra séria, como opção à onda rosa de Barbie, Oppenheimer lucrou alto em sua estreia
Por Cássio Starling Carlos

O longa-metragem de Nolan dialoga com Cidadão Kane – Imagem: Melina Sue Gordon/Universal Pictures

Envenenar a maçã do professor. A reconstituição desse gesto impulsivo do jovem físico em reação à autoridade de um orientador rigoroso não é mostrada por mera fidelidade à cronologia no início de Oppenheimer, em cartaz nos cinemas.

O ato irrefletido prefigura o engajamento, anos mais tarde, do cientista na criação de uma arma feita para eliminar não apenas uma vida, mas centenas de milhares. Ao aceitar a liderança do projeto de desenvolvimento da bomba atômica, Robert ­Oppenheimer tinha consciência de que a superioridade destrutiva servia também para consolidar a supremacia norte-americana num mundo bipolar.

O filme de Christopher ­Nolan preserva muitas informações relevantes da biografia de Kai Bird e Martin Sherwin, mas abandona o formato linear do relato. O entrelaçamento de momentos divergentes do percurso de ­Oppenheimer provoca um curto-circuito entre sua ascensão e sua queda.

A superposição de fios e o ziguezague da temporalidade poderiam ser mero capricho autoral do diretor conhecido por desafiar a lógica fácil dos blockbusters. Nolan dialoga de modo implícito com o clássico Cidadão Kane, modelo de cinebiografia na qual as partes obscuras, inexplicáveis, do protagonista são tão eloquentes quanto a face pública.

A proposta ganha intensidade com a atuação de Cillian Murphy, cuja opacidade interfere no processo de identificação com um herói. São escolhas que reforçam a complexidade do personagem e preservam o enigma a respeito de suas simpatias ideológicas e emoções.

E mais: as duas tramas de julgamento que cruzam o fio da construção da bomba evidenciam a ilusão da ideia de avanço tecnológico, expõem a manipulação e a apropriação da ciência por poderes que ela não pode controlar.

Depois de devolver Batman ao reino das trevas, Nolan sabota o mito da genialidade, apostando que deve haver espaço para filmes sobre heróis derrotados e não apenas super-heróis triunfantes.

A estratégia de lançamento do filme em sincronia com Barbie foi um risco que, desta vez, funcionou. O marketing Barbenheimer faturou 344 milhões de dólares no mundo no fim de semana da estreia, sendo 15 milhões só no Brasil.

A onda rosa de Barbie lotou as salas, e Oppenheimer lucrou alto vendendo a imagem de filme sério como opção ao filme pipoca. O público compra a ideia de que pode escolher.

E Hollywood cria um novo dilema. Ou ganha ou ganha.

Publicado na edição n° 1270 de CartaCapital, em 02 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um mártir da ciência ‘

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