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Crepúsculo dos deuses

Por que as desavenças entre artistas e empresas em torno de direitos autorais, salários e uso de IA pelo streaming pode parar Hollywood

Celebridades. A atriz Margot Robbie abandonou os eventos promocionais de Barbie e George Clooney apontou o momento de “inflexão” da indústria – Imagem: Justin Tallis/AFP e Henning Kaiser/DPA/AFP
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Em poucos meses, não haverá novas temporadas de The White Lotus, The Last of Us ou mesmo Emily em Paris iluminando as salas de estar. Tampouco a versão cinematográfica do musical Wicked, estrelado por Ariana Grande, será exibida nos cinemas quando as próximas férias escolares chegarem. E todas as filmagens do ­Gladiator 2, no Marrocos, serão, provavelmente, interrompidas indefinidamente. Os lamentos já podem ser ouvidos.

No primeiro fim de semana da greve dos atores dos Estados Unidos, o nível de frustração registrado pelos fãs de filmes e séries de tevê em todo o mundo superou as reações anteriores à greve dos roteiristas, iniciada em maio.

Desde que as negociações fracassaram em Los Angeles, na quinta-feira 13, há uma briga sobre o modo como os serviços de streaming estão reduzindo os salários e investindo no uso de Inteligência Artificial (IA) nas produções.

No dia seguinte ao anúncio da greve, George Clooney entrou na batalha pela garantia da renda dos talentos que geram boa parte do conteúdo de streaming. “Um grande número de atores e escritores perdeu a capacidade de ganhar a vida”, disse o ator, para então mencionar o que chamou de “ponto de inflexão em nossa indústria”.

A popularidade de Clooney e de outros rostos que agora se posicionam é incomparável com a de seus colegas das salas de roteiros e, por isso, levou a disputa de Hollywood ao topo da pauta dos noticiários internacionais. As produções envolvendo estrelas da indústria norte-americana, paralisadas em muitos países desde que a greve dos roteiristas começou, chegarão a um impasse. E os atores dizem estar preparados para uma longa luta.

Enquanto os fãs lamentam ficar sem novos programas, os profissionais autônomos temem ficar sem trabalho

Entre eles está a estrela de ­Barbie, ­Margot Robbie, que abandonou os eventos promocionais, e a vencedora do Oscar Susan Sarandon, que argumentou, neste fim de semana, que “as questões de streaming e IA são coisas que precisam ser tratadas agora”. “Estamos submetidos a contratos antigos para um novo tipo de negócio e, simplesmente, não está funcionando para a maioria das pessoas”, disse a atriz a repórteres em Nova York.

As palavras da atriz sucederam a um protesto ocorrido em Londres na quinta-feira, quando as estrelas de Oppenheimer abandonaram a estreia. O elenco contou com o apoio do diretor britânico Christopher­ Nolan, que disse ser este o momento certo para agir. O evento de lançamento do filme em Nova York, marcado para a segunda-feira 17, foi cancelado.

Festivais e eventos para fãs também estão ameaçados. Os organizadores do Festival Internacional de Cinema de Toronto esperam manter o programa, no início de setembro, mas, em entrevista à BBC, ponderaram: “O impacto desta greve na indústria e em eventos como o nosso não pode ser negado. Pedimos aos nossos parceiros e colegas que promovam um diálogo aberto”. O Festival de Veneza, cuja abertura está marcada para 30 de agosto, também está em risco, e a ­Comic-Con, de San Diego, poderá ficar sem suas principais atrações – as celebridades.

Na sexta-feira 14, mais de 160 mil membros do Screen Actors Guild (SAG) e da Federação Americana de Artistas de Televisão e Rádio (Aftra) pararam de trabalhar, juntando-se aos 11,5 mil membros do Sindicato de Escritores da América na maior greve em mais de 60 anos.

Tanto os roteiristas quanto os atores estavam negociando com a Aliança de Produtores de Cinema e Televisão sobre os chamados direitos de remuneração, que dizem respeito aos pagamentos feitos quando um programa ou filme é reprisado. Embora tenham milhões de assinantes graças às suas extensas bibliotecas, os serviços de streaming, como a Netflix, pagam muito menos em direitos do que a televisão aberta.

A atriz Fran Drescher, presidente em exercício da SAF-Aftra, conhecida por seu papel na série The Nanny, afirma que as respostas dos chefes dos estúdios e das plataformas têm sido, até agora, “insultuosas e desrespeitosas”.

Seus sentimentos são compartilhados por Brian Denis Cox, o ator escocês que faz o implacável Logan Roy da série ­Succession. “Se o pagamento desse tipo de direito cair, nosso seguro-saúde não estará garantido”, disse ele. Cox também atacou os planos de se usar programação de IA para replicar o trabalho artístico. “Nunca haveria uma voz original”, afirmou, citando o escritor britânico Jesse Armstrong, de ­Succession, e Mike White, o criador e único autor de The White ­Lotus. “Seria uma espécie de cópia do programa e isso é inaceitável.”

Se os talentos do cinema passaram a desempenhar seus papéis ao máximo, os magnatas durões da indústria também estão entrando no personagem. Na véspera da deflagração da greve, o CEO da Walt Disney, Bob Iger, disse à CNBC que as paralisações ocorreram “no pior momento do mundo”. “Existe um nível de expectativa da parte deles que, simplesmente, não é realista. Eles estão se somando a um conjunto de desafios que este setor já enfrenta. O que está acontecendo é, francamente, muito perturbador”, disse.

Chefão. Para Bob Iger, da Walt Disney, a greve ocorre “no pior momento do mundo” – Imagem: Brett Van Ort/USC Annenberg

O mercado produtor que funciona como base para a produção norte-americana, sediado em países como Grã-Bretanha, Irlanda, Grécia e Canadá, prepara-se para uma desaceleração sem precedentes. Falando de um escritório acima de um estúdio vazio na Brightlight, o cineasta canadense Shawn Williamson disse à BBC que a indústria do entretenimento canadense depende de autores e atores americanos.

A Brightlight foi a base para programas como The Good Doctor, da ABC, e­ F­irefly Lane, da Netflix, e faz até nove programas ao mesmo tempo. “Enquanto esperamos que os estúdios e os sindicatos resolvam as coisas, todos esses projetos estão em suspenso”, disse Williamson.

Em vários países europeus, os sindicatos de atores e roteiristas estão calculando os prejuízos. E os sindicatos que representam as indústrias de técnicos e equipes de apoio compartilham o mau presságio. O sindicato das indústrias criativas britânicas alertou que uma “tempestade perfeita está se formando” para os profissionais autônomos.

A solidariedade dos atores à greve dos roteiristas fará com que, nos próximos meses, haja menos entretenimento roteirizado, com menos estrelas para admirar e menos histórias para desfrutar.

O set de Wicked, em Buckinghamshire,­ foi abandonado e Os Fantasmas se ­Divertem 2 e Deadpool 3, que estão em filmagem, foram significativamente afetados. Já A Casa do Dragão, da HBO Max, pode escapar, pois tem um elenco em grande parte não americano. Acredita-se também que os atores estejam cancelando as sessões de gravação de som em filmes já rodados.

O gerente de locação britânico Ben Sanderson chama atenção para os vários autônomos que trabalham nessa indústria. “Esses profissionais, a qualquer momento, não estarão mais ganhando salário”, disse ao Observer.

Enquanto os espectadores lidam com a proximidade da falta de novos programas, outros convivem com a possibilidade­ do desemprego. Há, neste momento, a ameaça de uma dor real que passará a tocar mais que os rostos famosos que estão agitando cartazes. •

Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.


A PRECARIZAÇÃO POR AQUI

No mercado brasileiro, a desigualdade de forças é ainda maior e atinge também as empresas

Ainda que os problemas apontados por atores e roteiristas norte-americanos afetem também os profissionais brasileiros, a realidade, por aqui, é ainda mais marcada pela desigualdade de forças.

Aqui, como lá, está em curso uma tentativa de revisão na lógica do pagamento de direitos autorais, baseada na era pré-streaming. Associações de roteiristas e atores têm defendido que se regulamente a remuneração adicional a cada exibição pública das obras.

Também comuns aos dois países são as inquietações geradas pela Inteligência Artificial generativa que deve, no futuro, escrever roteiros e, hoje, já substitui a voz humana, ameaçando o trabalho de dubladores e locutores.

O que é particular ao mercado brasileiro é o fato de que muitas produtoras locais têm aberto mão dos direitos de propriedade sobre suas ideias para que elas sejam produzidas pelas plataformas – que têm o dinheiro. Muitas vezes, se submetem a contratos draconianos.

Em um painel realizado no Rio 2C, maior evento das indústrias criativas do País, KondZilla, após esmiuçar seu negócio, que envolve música, audiovisual, streaming e redes sociais, resumiu a realidade atual: “A gente está dando de graça, para as plataformas, nosso IP (sigla para propriedade intelectual, em inglês)”.

– Por Ana Paula Sousa

Publicado na edição n° 1269 de CartaCapital, em 26 de julho de 2023.

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