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Tirar dos super-ricos

Para Ingrid Robeyns, autora da filosofia do “limitarismo”, a criação de um teto para as grandes fortunas é a única forma pela qual se pode enfrentar a desigualdade

Arte: Pilar Velloso
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Há algumas boas perguntas que, embora urgentes, quase nunca são feitas. Se falamos sobre salários mínimos, por que não discutimos salários máximos? E por que os políticos tratam do mínimo com o qual uma família consegue sobreviver, mas não do outro extremo da escala da desigualdade: que nível de riqueza seria excessivo?

No mês passado, enquanto os multimilionários viajavam em jatos privados para Davos, a Oxfam lançava seu relatório anual sobre o abismo crescente entre esses poucos felizardos e os outros 8 bilhões de pessoas com as quais lucram e compartilham os recursos do planeta.

O relatório deste ano, intitulado Desigualdade S.A., articula a tendência presenciada por todos. Enquanto a maioria das pessoas, nos níveis local, nacional e global, tenta sobreviver com os mesmos rendimentos ou menos, os ricos e os muito ricos adquirem fortunas fenomenalmente maiores ano após ano.

O relatório revela que, desde 2020, “60% da humanidade ficou mais pobre enquanto os bilionários estão 3,3 trilhões de dólares ou 34% mais ricos do que eram no início desta década de crise”. As fortunas dos cinco homens mais ricos do mundo mais que duplicaram no período, com um acréscimo de 464 bilhões de dólares.

Trilhões. A economista analisa os efeitos da riqueza privada sobre a esfera pública – Imagem: Keke Keukelaar

Eleitores e políticos vão, simplesmente, continuar ignorando esse crescente abismo? Pode parecer que sim. O vergonhoso governo da Grã-Bretanha, liderado pelo bilionário Rishi Sunak, parece apostar suas magras chances de reeleição na redução drástica ou abolição do imposto sobre heranças – a mais benéfica política para famílias tão ricas quanto a dele. Em que momento surgirá a pergunta “não chega”?

Para Ingrid Robeyns, professora de Filosofia e Economia na Universidade de Utrecht, nos Países Baixos, a urgência dessa pergunta é antiga. Ingrid não apenas defende um limite para a riqueza como também se dispõe a atribuir um número a ela. Na verdade, dois: o primeiro é uma ambição política; o segundo, um apelo à consciência ética. “Num país com um perfil socioeconômico semelhante ao dos Países Baixos, onde vivo, deveriam ter como objetivo criar uma sociedade em que ninguém tenha mais de 10 milhões de euros. Não deveria haver decamilionários.”

Essa aspiração, que Ingrid chama de “limiar político realista”, vem acompanhada de um segundo número, que é mais um apelo à moralidade coletiva. “Defendo”, argumenta, “que para as pessoas que vivem numa sociedade com um sistema de aposentadorias sólido, o limite ético (de riqueza) seja ao redor de 1 milhão de libras, dólares ou euros por pessoa.” Esses limites, sugere, não só criariam sociedades mais justas e eficazes, como representam os níveis máximos que também tornariam os indivíduos, aí incluídos bilionários e decamilionários, mais felizes – a quem discordar, recomendo ver ou rever a série Succession.

Por que se fala do mínimo necessário para a sobrevivência, mas não se pergunta que nível de riqueza é excessivo e destrutivo?

Ingrid tem um nome para essa filosofia: limitarismo, título de seu novo livro, Limitarianism: The Case Against Extreme Wealth. Ela tem 51 anos, cresceu na Bélgica e obteve o doutorado em Cambridge, com Amartya Sen, o guru da economia do desenvolvimento. Enquanto a maioria de seus colegas se dedicou a ideias para reduzir a pobreza, ela se concentrou no outro lado da desigualdade – os efeitos da riqueza privada excessiva, repugnante, em nossa esfera pública precária e nossa democracia e meio ambiente em desmanche. O nivelamento, argumenta, nunca será possível sem uma drástica redução no nível de riqueza.

Quando falei com ela sobre o livro, perguntei-lhe se se sentia uma herege ao propor essas ideias. Ela riu. “Na filosofia política”, disse, “nós simplesmente vamos aonde as discussões nos levam. O livro foi lançado na Holanda em novembro passado e despertou reações polarizadas. “Muitas pessoas dizem: ‘Tenho pensado nisso durante toda a minha vida’”, relata. “Algumas, simplesmente, surtam e me dizem: ‘Isso é loucura!’ E posso compreender que, se você foi criado nesse paradigma capitalista neoliberal, como penso que quase todo mundo foi, tende a acreditar que não deve haver limite para as recompensas.”

O livro revela todos os aspectos dessa falácia. Alguns deles são: a ideia de que qualquer discussão sobre um limite à riqueza é causada por inveja; ou que as pessoas merecem a riqueza porque os milhões são obtidos principalmente com trabalho árduo e talento, e não sorte e oportunidades extremamente desiguais.

Abismo. Bezos ganha, a cada nove segundos, o salário médio de um empregado seu – Imagem: Mike Tsukamoto/Air Force Magazine

“Todos acreditamos que, como meta social, queremos tentar erradicar a pobreza’. Mas vamos olhar também para o outro lado: deveríamos e devemos minimizar o número de pessoas super-ricas e o volume da riqueza concentrada”, explica.

O livro explora as consequências negativas da super-riqueza não só para a coesão social e a democracia, mas para a produtividade, a saúde mental e física e as mudanças climáticas. A concentração de riqueza em poucas mãos está, em menos palavras, “incendiando o mundo”. “Poderíamos fazer muito mais com esse dinheiro”, diz.

A principal razão para que se dê tão pouca atenção aos potenciais benefícios dos limites à riqueza, afirma a autora, é que os beneficiários desse sistema continuam sendo “extremamente inteligentes ao emoldurar esse conjunto de políticas como não ideológicas”. Isso se faz, por exemplo, por meio das organizações de mídia que eles compram.

A filosofia de riqueza baseada na ideia de que “o céu é o limite” – para oligarcas, xeques, jogadores de futebol, CEOs de tecnologia, investidores em fundos hedge e advogados e banqueiros que os apoiam – passou a ser considerada uma consequência “normal” dos mercados livres. Apesar de a economia que “escorre de cima para baixo” ter sido há muito desacreditada, aparentemente continua­mos escravos da mitologia dos “criadores de riqueza” e de todos os seus zeros.

Platão afirmou ser impossível criar uma sociedade coesa se os cidadãos mais ricos ganhassem mais de quatro vezes os salários dos mais pobres

Mas, como argumenta Ingrid, as riquezas em cascata são uma opção política como qualquer outra, afinal de contas, “regulamos os mercados de maneiras diferentes o tempo todo”. Os críticos de suas ideias tendem a dizer que ela é ingênua ou comunista, ou ambos. Ela insiste não ser nenhuma dessas coisas e refuta tais argumentos, defendendo que impor um limite máximo aos rendimentos e à riqueza é não apenas ético, mas racional.

Nessa discussão, ela pode citar como companheiros de viagem Thomas ­Piketty, autor do best seller O Capital no Século XXI, e filósofos da democracia que remontam a Platão – que afirmou ser impossível criar uma sociedade coesa se os cidadãos mais ricos ganhassem mais de quatro vezes os salários dos mais pobres. No ano passado, Jeff Bezos ganhou, a cada nove segundos, o salário médio de um de seus empregados na Amazon.

Para que a sociedade busque esse reequilíbrio, diz, é necessária uma reforma radical da tributação, que se concentre na riqueza e não na renda. Sua tese é que a herança é a vantagem não meritocrática máxima, e deve ser, essencialmente, um benefício coletivo, não familiar. “A grande maioria das pessoas não recebe quase nada (da geração anterior). E há pessoas que apenas perpetuam essas dinastias de multimilionários e bilionários.”

Os plutocratas em Davos têm estado, sem dúvida, cheios de ideias sobre como devemos pensar de modo diferente para solucionar as crises políticas, econômicas e ambientais. Mas, como nos lembra a autora, esse hábito de “pensar no céu azul” tende a não discutir a ligação fundamental entre essas crises e o acúmulo de riqueza e a filantropia privada seletiva, com “eficiência tributária”, dos próprios delegados à cúpula.

Dinastias. A autora defende que a herança, tema em torno da qual gira a série Succession (acima), deve ser um benefício coletivo e não familiar – Imagem: HBO

E Ingrid sugere que, para as ideias limitaristas ganharem força, grande parte do impulso terá de vir dos próprios milionários e multimilionários. “Posso ser otimista demais em relação a isso”, diz ela, “mas penso que, às vezes, essas pessoas têm um momento na vida que desencadeia esses pensamentos.”

Seu livro oferece alguns estudos de caso de indivíduos fabulosamente ricos que compreenderam os efeitos de suas fortunas não só na economia e no planeta, mas no seu próprio bem-estar. O bilionário irlandês-americano Chuck Feeney, que ganhou dinheiro com o monopólio das free shops nos aeroportos, não teve maior prazer do que doar todo o seu dinheiro. Mackenzie Scott, ex-mulher de Jeff ­Bezos, tem distribuído bilhões de dólares do seu acordo de divórcio por ano, com base no fato de que “ela os está devolvendo ao local (à sociedade) de onde vieram”.

Outros, como a herdeira do entretenimento Abigail Disney, ou o grupo britânico “Patriotic Millionaires”, simpatizam com os fundamentos das ideias de Robeyns. Em Davos, 250 milionários e bilionários simpatizantes desses grupos assinaram uma carta aos líderes mundiais exigindo um imposto sobre a riqueza: “Isto não vai alterar fundamentalmente o nosso nível de vida, nem privar nossos filhos, nem prejudicar o crescimento econômico dos nossos países. Mas transformará a riqueza privada extrema e improdutiva em um investimento para o nosso futuro democrático comum”.

Nas mentes de outros bilionários, essas reflexões nascem do realismo ou do medo. Nick Hanauer vendeu sua empresa de publicidade na internet para a ­Microsoft por 6,4 bilhões de dólares em 2007. Em 2019, escreveu um memorando aberto a seus “companheiros zilionários” sobre as lições da história: “Se não fizermos algo para corrigir as flagrantes desigualdades, os forcados virão atrás de nós”.

“É, provavelmente, verdade que, no passado, já teria havido um incêndio de castelos”, diz Ingrid. Ela espera, em vez disso, que um “ecossistema de acadêmicos, livros e filmes”, bem como uma onda popular com ambições semelhantes às do movimento Occupy – “nós somos os 99%”.

Seu livro quer iniciar uma conversa sobre limites, se não for tarde demais. Depois de suas palestras sobre o assunto, alguns membros da plateia perguntam: “Por que se concentrar nos super-ricos e não em todos nós aqui, que provavelmente temos mais do que precisamos?”

Ela concorda com esse sentimento apenas até certo ponto: “Há algo especial na extremidade superior da desigualdade. Obviamente, você e eu poderíamos pagar mais impostos ou doar mais para instituições de caridade, mas não temos o poder de minar a democracia ou negar a justiça climática, como fazem alguns bilionários”.

Pergunto se, enquanto escrevia o livro, ela ouvia uma voz em sua cabeça criticando-a: “Vamos lá, isso nunca vai acontecer”. “Claro”, ela diz, “muitas pessoas, ao lerem meu livro, perguntarão: ‘O que posso fazer’? Pode parecer que jamais poderemos resolver isso, mas minha resposta é que é dever daqueles que estão em posições relativamente seguras assumir suas responsabilidades como cidadãos, apresentar os argumentos. Ser voluntários. Envolver-se na comunidade. Sou uma pessimista natural”, diz, “mas desistir não é uma opção.” •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1297 de CartaCapital, em 14 de fevereiro de 2024.

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