Cultura

“Tatuagem”: filme ajuda a entender atores sociais surrados do País

A importância do comportamento desse setor é indispensável. É nele que as reinvenções de contestação à ordem vigente ganham peso

Os atores Irandhir Santos e Rodrigo Garcia em cena do filme Tatuagem
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Quem acompanha, mesmo à distância, o aclamado cinema pernambucano não se surpreende com o filme Tatuagem (2013). As marcas patentes de um cinema inovador e autêntico que continua esquadrinhando o universo social periférico do Brasil, em geral, e de Recife, em particular, estão plasmadas nesse novo filme, com seus traços, suas tatuagens.

A maior surpresa é a estreia de Hilton Lacerda como diretor de longa de ficção, já que o artista brasileiro é mais conhecido pelos roteiros magistrais que tem levado a cabo, como Árido Movie (2004), Baixio das Bestas (2006), A Festa da menina morta (2008), A Febre do rato (2011).

Não é nenhum exagero sublinhar, portanto, que parte da fornada expressiva do cinema brasileiro atuante é devida às “loucuras” de Lacerda. Sem um pingo de ingenuidade, nele encontramos uma capacidade de reflexão crítica, muitas vezes através de lembranças afetivas, enquadradas a partir do olhar da periferia da periferia do sistema. Este é o ponto. Compreender as raízes do setor social dessa embocadura, seus conteúdos e suas “atitudes periféricas”, nas palavras do próprio diretor. É preciso auscultar os atores sociais surrados do país.

A importância do comportamento desse setor é indispensável em termos sociológicos e políticos, pois é nele que historicamente as reinvenções de contestação à ordem social vigente ganham maior peso, seja na forma de organização social, seja na forma de criatividade artística. Em condições claramente adversas, os periféricos se viram como podem. Como versava o poeta Paulo Leminski, “Na luta de classes, todas as armas são boas: pedras, noite e poemas”.

Tatuagem se passa em 1978, em plena ditadura civil-militar, época em que a abertura política “lenta e gradual” não convencia nem os setores artísticos nem a ninguém. O espectro do medo ainda rondava pelo país. Foi nessa conjuntura que sucedeu uma pequena casa de espetáculo conhecido como Vivencial Diversiones, localizado entre a cidade de Recife e Olinda, um teatro anárquico liderado por Clécio (interpretado pelo magnífico Irandhir Santos). Na luta de classes que vigora em Tatuagem, a arma privilegiada é a noite.

Difícil imaginar um teatro-show anarquista na periferia da cidade de Recife em plena ditadura. Afinal, “a loucura não era algo excepcional naqueles tempos”, bem dizia o escritor chileno Roberto Bolaño. A “práxis da desordem” do universo dos personagens é observada através de duas linhas de interpretação que dinamizam o filme: pelas montagens teatrais e sua execução e pela convivência social entre os artistas. Ao invés do lema “tradição, família e propriedade”, o que vigora nesses espaços são os avatares da vida sexual mundana, erótica, coletiva, noturna, rústica, claramente imprópria aos costumes morais da sociedade oficial. Até o cinema de Lars Von Trier fica acanhado…

A entrada de um jovem forasteiro no grupo, Fininha (interpretado por Jesuíta Barbosa), que circula socialmente entre a obrigação do trabalho militar (como soldado) e a convivência no seio artístico, faz com que o contexto político em que perpassa a trama fique integrado à história.

Filho de mãe fervorosamente religiosa, jovem de personalidade forte, charmosamente discreto apesar de sua pouca idade, Fininha representa aquele que vivencia a experiência cotidiana entre dois mundos sociais dissonantes, mas que desde cedo faz sua escolha. Sem tergiversações, toma partido pela noite profana e não pelo dia sagrado. Supreendentemente, ele não é acometido pelo medo, que seria um sentimento legítimo pela posição social que ocupa, mas movido por paixões secretas e pela aventura do que lhe é mais atraente.

Por outro lado, Clécio, protagonista de Tatuagem, atua em várias frentes: como pai, amante, organizador, diretor da peça, ator, poeta. A pluralidade de suas relações, tanto profissionais quanto pessoais, faz com que enfrente conflitos dos mais distintos calibres. Desde problemas do filho, o pequeno Tuca, que afirma à professora a não existência de Deus, mas de Deusas e, somado a isso, rebela-se ao ser achincalhado pelos colegas por ser filho de “pai viado” e “mãe solteira”; aos contratempos e, às vezes, indisposições de sujeitos (como Paulete) durante a confecção da apresentação do grupo de teatro.

A certa altura, mesmo a inesperada ordem de proibição do espetáculo imposta pelos censores da ditadura não impossibilita (e nem adia) a apresentação, agora mais apimentada e mais provocativa, como de costume. Clécio usa um discurso sarcástico ao questionar o equacionamento simbólico e político dos conceitos de liberdade e democracia e o falseamento que eles expressam na vida das pessoas e acaba laconicamente confabulando que somente nosso “cu” é que tem real liberdade. Na luta de classes, Clécio responde com poemas.

Premiado com o Kikito de melhor filme no Festival de Gramado, Tatuagem é uma resposta política aos setores aristocráticos da sociedade brasileira que marginalizam os espaços artísticos da periferia da periferia pela diferenciação e sofisticação do trabalho artístico dominante. Preconceito, segregação e liberdade ainda são temas que urgem na sociedade brasileira – a memória projetada para o futuro –, em tempos de proibições e constrangimentos à ala subalterna do país.

Deni Ireneu Alfaro Rubbo é doutorando em Sociologia pela USP.

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