Cultura

Sharon Jones, e o soul, estão vivos

Depois de um tratamento contra o câncer, a americana, acompanhada pelos Dap-Kings, lança “Give the people what they want”

Sharon Jones durante recente apresentação no programa Saturday Night Live, nos EUA
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De Nova York

Dê as pessoas o que elas querem. É o que pede o título do novo trabalho de Sharon Jones, lançado oficialmente nesta terça-feira 14 nos EUA. Primeiro grande disco da música popular de 2014, Give the people what they want é, no entanto, a rigor, uma produção de 2013. Em junho do ano passado a ex-carcereira da penitenciária de Rikers Island, conhecida por sua afinação, sentiu uma dor estranha nas costas quando se apresentava em Boise, capital do estado de Idaho, e percebeu que, ao buscar uma nota específica, encontrava, para seu estranhamento, outra, bem mais grave. No avião de volta para Nova York, não conseguia sequer se mexer na cadeira de tanta dor nas costas. Era um câncer agressivo no pâncreas, que a deixou de molho por seis meses, dedicados à quimioterapia e a um período inédito de jejum musical.

Em uma entrevista emocionada à revista digital especializada em música Spin, Jones contou que “não ouvia nada, nem música no meu fone de ouvido. Eu me concentrei na minha recuperação e decidi que só lançaria o disco, que já estava gravado, quando pudesse apresentar as músicas, no palco, do jeito que gosto”.

A última sessão de quimioterapia aconteceu na virada do ano. E, na primeira semana de fevereiro, completamente careca, Sharon Jones retorna, depois de quase um ano de ausência, aos palcos da cidade, com sua cozinha preferida, os músicos Binky Gripitte, Bugaloo Velez, Homer Steinwess e David Guy, a atual versão dos Dap-Kings, adorados pelos fãs do retro-soul. “Estou pensando em entrar com uma peruca de afro, tirá-la no segundo número e contar um pouco do que aconteceu comigo”, diz.

Principal trunfo do produtor Mark Ronson para criar a sonzeira imaginada por Amy Winehouse para Back to Black, os Dap-Kings são “a banda de Sharon Jones” há quase doze anos. Suas apresentações em 2011, em São Paulo e no Rio, foram consideradas pontos altos do BMW Jazz Festival. “Aos 57 anos, Sharon Jones voltou para ficar. O disco novo desperta uma vontade danada de sair dançando, pulando e cantando, com pausas pra chegar no seu amor e colar as bochechas juntinho, ou passear de mãos dadas rumo ao pôr do sol. Ou de simplesmente ficar se deliciando com os arranjos que, apesar de lembrarem a áurea era sessentista do soul, têm um vigor de execução totalmente atual”, diz o DJ Preto Serra, que bateu ponto na apresentação carioca, no Teatro Casa Grande, e é um dos criadores da festa BLAX, voltada para a música negra.

Serra toca naquele que poderia ser o tendão de Aquiles de Give The People What They Want: em seu quinto disco passando a limpo o dicionário soul, qual a relevância de Jones e seus Dap-Kings? O crítico Fred Thomas escreve que “se tivesse sido lançado em 1966, este seria um disco absolutamente perfeito”. A resposta está na execução das dez faixas – o disco é curtinho, ultrapassando de raspão a meia-hora – com precisão dos músicos e o vozeirão de Jones, pós-Motown e Stax desde a primeira música de trabalho, a profética Retreat!!, “que foi imaginada como um recado de amor, mas que acabou sendo dirigida contra o câncer”, diz, direta, la Jones.

Oriunda da mesma Augusta, no estado da Geórgia, onde James Brown deu seus primeiros passos musicais, Jones também começou a cantar gospel, no coro da igreja. Adolescente, mudou com a família para o Brooklyn nos anos 70 e sonhou com uma carreira no funk e disco, que jamais aconteceu. Fez back-up em discos aos borbotões, de gospel, mas também da nova paixão, soul, assim como blues, funk e até disco. Nos anos 80, voltou a cantar na igreja, já em Nova York, enquanto pagava as contas com o emprego de agente penitenciária. Foi redescoberta nos anos 90 com singles lançado pelo selo Desco, e rapidamente ungida como a ‘rainha do funk underground’ na maior metrópole dos EUA. Mas foi apenas a partir da parceria com os Dap-Kings, na gravadora local Daptone, na virada do século, que ela conseguiu de fato voltar a viver da música.

O disco novo traz, além de Retreat!, as pérolas Long time, wrong time, o namoro com o soul psicodélico em Making Up and Breaking Up (And Making Up and Breaking Up Again), o funkeado You’ll be Lonely, o doo-wop Get Up and Get Out e até um protesto contra o aumento da desigualdade social nos EUA, que poderia ter sido o hino da campanha de Bill De Blasio à prefeitura de Nova York no ano passado, People Don’t Get What They Deserve, já comparado a Curtis Mayfield.

Menos dor de cotovelo e mais um convite para o saracoteio, Give People What They Want é o trabalho mais azeitado de Sharon Jones. A vontade, ao se terminar de ouvir, é, como frisa Preto Serra, a de colocar na ‘vitrola’ a bolacha de novo. O disco, como todos os outros da Daptone, é lançado em formato LP, digital e CD. “Meu próximo objetivo é para a indústria musical voltar a reconhecer o soul. Deveria haver uma categoria ‘soul’, por exemplo, no Grammy da semana que vem. Eles acham que o soul morreu nos anos 70, o que não é verdade, veja Charles Bradley, Lee Fields, Naomi Shelton, eu. Nós somos cantores de soul music. A única concessão foi feita a Amy Winehouse e Mark Ronson, e Jay-Z e poucas pessoas se interessaram por este revival, mas ele é rico e orgânico desde os anos 90. Com a morte de Amy, a indústria virou as costas para a gente novamente e nos colocam na gaveta de Rhythm & Blues, juntamente com Taylor Swift e Justin Timberlake. Ora, estes dois fazem música pop, ótima, mas é outra coisa, eles não são cantores de soul music. Não está certo isso. Os cantores de soul estão aqui. A soul music está viva, exatamente como eu”, diz Jones. Durma-se com um barulho destes.

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