Cultura

Romance ‘antipolicial’ de Reginaldo Prandi volta aos anos 50 para entender o Brasil de hoje

‘Motivos e Razões Para Matar e Morrer’ constrói uma ficção às vésperas da ditadura militar

“Para esse romance, li muitos jornais dos últimos anos da década de 1950", diz Prandi (Foto: Renato Parada)
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Um dos principais nomes na sociologia brasileira, Reginaldo Prandi usou a pandemia para fazer duas atividades de que sempre gostou: pesquisar e escrever. Além de atualizar sua tese de livre-docência, Os Candomblés de São Paulo, relançada em edição comemorativa, escreveu o romance Motivos e Razões Para Matar e Morrer (Companhia das Letras, 336 páginas, 73,15 reais), que ele define como um “antipolicial”. 

“A narrativa tem alguns elementos do gênero policial, como os crimes, mas subverte as regras, ao colocar, por exemplo, um delegado que não é herói”, conta, em entrevista a CartaCapital

A narrativa se passa em uma pequena cidade do interior, no final dos anos de 1950, quando crimes começam a acontecer. Logo nas primeiras páginas, uma mulher é assassinada pelo namorado em frente ao cinema. Mas, mais do que crimes, o que interessa no livro é a construção coletiva da cidade num momento crucial da história do Brasil, quando se avizinhava a década de grandes transformações culturais e tecnológicas, mas também o Golpe Militar em 1964. 

No livro, os crimes que começam a se acumular mostram que, de pacata, a cidade não tem nada. Os moradores, em polvorosa, tentam solucionar as mortes, uma vez que o delegado titular vive de licença, e seu substituto é altamente corrupto. Nesse sentido, Motivos e Razões figura uma espécie de corrupção sistêmica num cenário situado no passado, que revela muito do país no presente. 

O momento em que trama está situada poderia ser visto como o da perda da inocência – tanto dos seu personagem principal, o adolescente Matheus, quanto do país. Mas Prandi vai além. “Quando vemos essa cidade de perto, está tudo ali, que se mantém no Brasil até hoje: desigualdade social, corrupção, racismo, homofobia, tráfico. Tudo isso já existia, mas não tinha nome”, diz. 

Mesmo mantendo os dois pés fincados na verossimilhança, o autor explica que levou o presente para o passado, no romance para, assim, descortinar, a nossa condição no Brasil do século XXI, onde esses elementos permanecem fortes e são nossos maiores problemas. “A gente mora num Brasil que só fez piorar essa situação.”

Professor Emérito da USP e autor de diversos livros de ficção e de não-ficção, Prandi explica que, quando está escrevendo um romance, tenta matar o seu lado sociólogo e pesquisador, mas, como isso nem sempre é possível, usa sua experiência em pesquisa a favor do livro. “Para esse romance, li muitos jornais dos últimos anos da década de 1950, e, mais do que ver as notícias, me interessavam as propagandas, que são muito reveladoras dos costumes de uma época”, explica. “E esse é o momento que o consumo e a modernização estão ganhando força.” 

Por exemplo, a luz elétrica chega à cidade no meio do livro e em seu discurso demagogo, o prefeito anuncia o que estava por vir: ele menciona Brasília, que seria inaugurada em breve, e a televisão que permitirá “vigiar tudo o que se passa na […] capital da esperança”. 

Especialista em religiões e mitologias afrobrasileiras, Prandi não deixa de incorporar o tema no seu romance. Uma personagem, Dona Conceição, é filha de Iemanjá, que joga búzios, e faz previsões. O autor classifica-a como “a bruxa do bem” da cidade, mas o que não a impede de sofrer preconceitos, por ser negra e por sua religião naquele lugar tão marcado pela força da Igreja Católica. 

O padre é um personagem peculiar dentro de Motivos e Razões. Há suspeita de um envolvimento sexual com coroinhas, mas, ainda assim, ele é respeitado por conta do poder da Igreja. “É uma cidade povoada por uma elite agrária muito católica, e Igreja tem muito poder”, diz. “Com o tempo, como sabemos, no Brasil, isso foi se transformando, como o avanço da secularização e também da ascensão evangélica – especialmente na política.”

Os jovens personagens do romance – Matheus e seus amigos – são a geração que, poucos anos depois, iria enfrentar ou apoiar a Ditadura, viveriam a repressão, mas também a efervescência cultural e social – especial de Maio de 68. E, talvez, em suas entrelinhas, Razões e Motivos seja, no fundo, exatamente sobre a infância e adolescência dessas pessoas que chegariam à vida adulta no momento da ascensão dos militares. 

Prandi, que chegou em São Paulo em 1964, vindo interior de São Paulo, pouco depois do Golpe, conta que se deparou com a cavalaria na Av. da Liberdade, no Centro de São Paulo, reprimindo um protesto, o que o fez se esconder num bar (do qual se tornou cliente depois). Talvez seus personagens, que eventualmente abandonarão a cidade fictícia do livro para viver na capital, tivessem uma recepção parecida. 

 

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