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Perder os ideais, mas não a ternura

Em ‘O Melhor Está por Vir’, o diretor italiano Nanni Moretti faz uma crítica bem humorada do estado do cinema e da arte

Perder os ideais, mas não a ternura
Perder os ideais, mas não a ternura
Passagem do tempo O alter ego do cineasta (ao centro) tem agora 70 anos e remete a personagens antigos – Imagem: Pandora Filmes
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Como mirar o passado sem naufragar na nostalgia? Como projetar o futuro sem virar profeta de hospício?

O Melhor Está por Vir, título brasileiro do último longa-metragem de Nanni Moretti, em cartaz nos cinemas desde a quinta-feira 4, acentua a ironia que o cineasta italiano adota ao falar do presente, tempo que muita gente percebe como um poço sem fundo.

O título original, Il Sol dell’Avenire, evoca a canção Fischia il Vento, hino antifascista que mobilizava os integrantes da resistência nos anos finais da Segunda Guerra Mundial. Enquanto a letra apontava para a promessa de uma primavera vermelha, o filme de Moretti, um otimista desesperado, aponta para a seguinte visão: “Pior que está não fica”.

O diretor-ator interpreta ­Giovanni, um cineasta indignado com a perda da imaginação do cinema. Mas, em vez de se entregar à lamúria, O Melhor Está por Vir, que concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes, propõe emoções que não se confundem nem com a adesão nem com a repulsa.

Trata-se de um filme alegre, com vontade de preservar forças e descartar entulhos. Ou seja, parece feito sob medida para este momento de “adeus ano velho, feliz ano novo”.

O projeto que Giovanni tenta concretizar retrata situações que expõem o descompasso entre os ideais de cada um e a realidade imposta pelo próprio tempo presente. No filme dentro do filme, o ator Silvio Orlando interpreta um editor do L’Unità, jornal porta-voz do Partido Comunista Italiano (PCI).

A trama dirigida por Giovanni se passa em Roma, no momento em que o regime soviético invade a Hungria, em 1956, e coloca em xeque o alinhamento irrefletido aos ditames de Moscou.

Vera, parceira do jornalista, lidera a dissidência ao tomar as dores do grupo de artistas circenses húngaros que foram se apresentar na Itália e, a distância, pela tevê, acompanha a invasão de seu país. Para ela, a autonomia desses artistas será mais importante do que a carteirinha do PCI.

O título original, Il Sol dell’Avenire, evoca o hino antifascista que mobilizava os integrantes da resistência nos anos finais da Segunda Guerra Mundial

Do lado de cá do espelho da ficção, ­Paola, esposa e produtora de Giovanni, vê que a história entre ambos chegou ao limite e tenta tomar coragem de pôr fim à parceria matrimonial e profissional.

Moretti, como se espera, não perde tempo com malabarismos metalinguísticos. A duplicidade narrativa serve mais como fábula. Trata-se de refletir o presente no espelho do passado para apagar as ilusões. Mas sem perder o bom humor, jamais.

O cineasta italiano retoma, com seu novo Giovanni (esse era também o nome do protagonista de O Quarto do Filho, um psicanalista), a verve associada ao início de sua carreira. Desde Eu Sou Autossuficiente (1976) até Aprile (1998), ele usava a incompetência e a inadequação de seus personagens como forma de recusar o modelo da eficiência.

A partir de O Quarto do Filho (2001), o cinema de Moretti tingiu a ironia de melancolia e alcançou outro nível de ferocidade, como em Habemus Papam (2011), sobre um novo pontífice que, simplesmente, não consegue assumir o seu posto e aparecer para os fiéis. Essa fase se estendeu até Tre Piani (2021).

Por mais que Moretti filme muito ele mesmo, seu cinema nunca deixou de ser político. Assim como a noção de política sofreu mutações, a ideia de cinema em primeira pessoa que perpassa sua obra mudou.

Também diferentes estão os tempos, os valores, as faces, os corpos e as vozes dele próprio e de seus intérpretes constantes, como Margherita Buy – presente em O Crocodilo (2006) e Habemus ­Papam – e Silvio Orlando – ator em Aprile e O Quarto do Filho.

Em vez de 20, 30, 40 anos, seu alter ego tem agora 70. Como ele próprio comenta numa cena-reminiscência, “eu já não nado como antes”.

Isso não o impede, porém, de perceber e revelar a miséria vestida de abundância, como num diálogo do cineasta ficcional com representantes da Netflix.

Assim como o mundo e as pessoas, o cinema mudou. Moretti, no entanto, não se entrega à falsa crença dos que dizem “no meu tempo era melhor”.

Seu personagem tem o superpoder de passear no tempo, encontrar ele mesmo e os outros, olhar o passado de perto e ver que nunca houve um tal mar de rosas.

Recusar o naufrágio do presente é essencial para quem quer sobreviver a ele. Por isso, O Melhor Está por Vir não é utópico, nem distópico. Não é ressentido, nem nostálgico. É um filme que conta apenas com a alegria. •

Publicado na edição n° 1292 de CartaCapital, em 10 de janeiro de 2024.

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