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As estratégias do cinema argentino para refrear as ameaças de Javier Milei

O candidato promete fechar o principal órgão de fomento à indústria audiovisual do país; CartaCapital conversou com INCAA e explica como comunidade artística lida com as propostas do ultralibertário

O candidato da ultradireita à Presidência da Argentina, Javier Milei. Foto: Luis Robayo/AFP
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BUENOS AIRES – Os vendavais políticos e econômicos nunca foram suficientes para esfriar o ritmo e a qualidade do cinema argentino. Pelo contrário – essa indústria se acostumou a crescer em meio à crise. 

O primeiro Oscar de melhor filme em língua estrangeira entregue a uma produção da América Latina foi conferido, justamente, a uma película gravada clandestinamente em meio à ditadura argentina. Da exigência forçada das filmagens clandestinas,A História Oficial (1985), de Luiz Puenzo, passou para o prêmio máximo do cinema.

Décadas depois, em meio à fuga de capitais e ao histórico confisco das poupanças no início dos anos 2000 (conhecido como corralito), nasceram ícones do cinema contemporâneo argentino como Nove Rainhas (Fabián Bielinsky, 2000), O Pântano (Lucrecia Martel, 2001), O Filho da Noiva (Juan José Campanella, 2001) e Lugares Comuns (Adolfo Aristarain, 2002).

O vigor do cinema argentino não é fruto do acaso. Por trás dos dois prêmios Oscar – O Segredo dos Seus Olhos também arrematou a estatueta, em 2010 – e de várias outras honrarias nos principais festivais do mundo, está o Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales, INCAA, um organismo público fundado ainda na década de 50 para fomentar a produção audiovisual do país.

A produção cinematográfica argentina concentra as suas forças no órgão. O INCAA gerencia salas de cinema no país, comanda centros de formação sobre cinema e audiovisual e organiza toda a cadeia da indústria cinematográfica, da produção à distribuição, até chegar aos espectadores. Também é responsável pela organização do Festival de Mar Del Plata, o único da América Latina na categoria “A” entre os festivais mundiais.

O momento atual da política, porém, acabou por trazer uma nova ameaça ao cinema argentino. Javier Milei, da coalizão La Libertad Avanza, anunciou que, caso seja eleito, pretende acabar com as atividades do INCAA. 

Ainda em agosto, logo depois de ter saído vencedor das primárias que definiram os candidatos à presidência, Milei disse que fecharia o INCCA porque, segundo ele, o órgão “sempre responde a quem está no poder”. Para o libertário, outro motivo para o fechamento seria o fato de que o organismo geraria déficit. “Se gera déficit, é porque não gera um produto que apetece para o mercado. Em condições normais, não deveria existir”, afirmou. 

De lá para cá, Milei vem reiterando, a cada aparição pública, as suas ideias libertárias, que, segundo ele, envolvem o fechamento de diversos órgãos públicos ligados à cultura, à saúde e à educação. 

A defensiva do INCAA

“Nunca estivemos diante de um risco tão grande”, lamenta Juan Laureano Landaburu, gerente-geral do INCAA, em conversa com CartaCapital, na sede do instituto, em Buenos Aires. 

O instituto, sublinha ele, não é uma ilha no rol de ameaças de Milei. “Está se concretizando um processo maior, que é o de não reconhecimento do direito de inclusão de todos os setores sociais à cultura. É por meio dessa lógica, que quer tirar o direito das pessoas à cultura, à saúde e à educação, que Milei lança mão de um projeto de país parecido com o que tentou fazer [o ex-presidente] Jair Bolsonaro. Ou seja: não importa a inclusão, e só tem validade aquilo que tem eficácia mercadológica”, avalia Landaburu, meneando a cabeça. “É extremamente perigoso.”

Landaburu “O INCAA se autofinancia. O argumento do candidato para tentar fechar o organismo não é racional”, completa ele. Milei, segundo ele, “não entende que o cinema – e a cultura – é a expressão de um país”. 

Como o INCAA se sustenta e banca o cinema argentino

Vinculado ao Ministério da Cultura argentino, o INCAA tem como principal fonte de recursos o Fundo de Fomento Cinematográfico (FFC), criado a partir de uma lei de 1994. Para que o fundo tenha dinheiro, é cobrada uma taxa de 10% sobre todos os ingressos de cinema na Argentina, seja para a exibição de filmes nacionais ou estrangeiros. 

Outra parte da saúde financeira do FFC é baseada em taxas cobradas a canais de televisão – abertos ou fechados – que reproduzem produções nacionais. Uma outra fatia, embora menos significativa atualmente, vem da venda de DVD‘s no país. Existe a ideia, ainda em discussão inicial, de que uma outra fonte poderia vir da reprodução de filmes argentinos por meio das plataformas de streaming, que mudaram o padrão de consumo cinematográfico nos últimos anos. 

O Cine Gaumont é um dos complexos administrados pelo Incaa (Foto: André Lucena)

Em 2022 e 2021, o repasse do FFC representou cerca de 80% de todos os recursos do INCAA. Outra fonte de recursos, ainda que minoritária, envolve aportes do Tesouro Nacional.

Apesar da crise econômica, os números mostram que o cinema argentino segue firme. Em 2022, segundo o INCAA, mais de 35 milhões de tickets para entradas de cinema foram vendidos no país. O montante indica que o mercado audiovisual argentino foi o que mais se recuperou, até o momento, dos efeitos da pandemia, quando as salas de cinema ficaram fechadas, segundo um levantamento do instituto IBOE. Quando se observa a quantidade de filmes argentinos que são estreados, o INCAA é responsável pelo lançamento de uma média de mais de duzentos filmes argentinos por ano.

Tudo isso em conta, é de se esperar que a indústria audiovisual, analisada dos pontos de vista estritamente comerciais e econômicos, tenha um peso sobre a economia do país. O que, de fato, acontece. Segundo dados do INCCA, a fatia desse setor sobre o Produto Interno Bruto (PIB) da Argentina girou na casa dos 6%, nos últimos dois anos.

Incertezas sobre o que Milei poderá fazer

Apesar das idas e vindas da política argentina, é a primeira vez na história democrática do país que um candidato à presidência ameaça diretamente fechar o INCAA, como explica Guillermo Garma, gerente de administração do instituto. 

“Nós temos sessenta e seis anos de funcionamento”, frisa Garma, dos quais vinte e cinco contam com o seu trabalho. “Passamos por tudo: governos radicais, peronistas, militares – militares, veja bem -, mas ninguém nunca ameaçou fechar o INCAA. É a primeira vez que um candidato com possibilidade de chegar à presidência propõe isso”, aponta Garma, frisando que o clima de apreensão é unânime entre os funcionários do organismo, diretores, produtores, atores e toda a comunidade cinematográfica e audiovisual.

Acontece que, para fechar o órgão, Milei teria um desafio para fazer valer a sua promessa. “O INCAA foi fundado por lei. Por isso, para fechá-lo, Milei teria que aprovar uma lei junto ao Legislativo. Ele não conseguiria fechar simplesmente por meio de um decreto”, indica Landaburu. Nas eleições legislativas, realizadas em outubro, a sigla de Milei não obteve maioria nas duas casas legislativas.

Landaburu reconhece o respaldo jurídico que o órgão tem. Nem por isso, porém, o INCAA e o cinema argentino teriam vida fácil sob um eventual governo Milei, seja qual for o cenário. “O que ele pode fazer, do ponto de vista prático?”, questiona Landaburu, enquanto busca uma resposta que, reconhece, vem fazendo a si mesmo e aos colegas de trabalho nos últimos meses. 

“Tirar as principais fontes de recursos do INCAA, que foram estabelecidas, essas sim, por decreto”, lamenta. “Isso acabaria com a saúde financeira do instituto e, pouco a pouco, poderia inviabilizar as nossas atividades. Se ele tirar os fundos de repasse, o que poderá fazer por decreto, na prática, acabaria com o INCAA”, sentencia. 

Landaburu chama a atenção, também, para o fato de que o desmonte poderia acarretar no fim dos empregos dos funcionários do organismo. “Há pessoas aqui que trabalham no INCAA há mais de trinta e anos, e, de repente, ficariam sem emprego”, projeta. 

Reação imediata

Desde que Milei chegou à cena política do país com falas incendiárias, a comunidade artística argentina – especialmente, aquela ligada à produção audiovisual – vem manifestando contrariedade à promessa de ruptura do presidenciável. 

Nesta semana, por exemplo, durante a realização da 38ª edição do Festival Internacional de Cinema de Mar Del Plata, figuras importantes do cinema argentino, como as atrizes Mercedes Morán, Juan Leyrado e Luis Ziembrowski participaram de uma manifestação de repúdio à possibilidade de fechamento do organismo, bem como de defesa do cinema nacional.

A iniciativa gerou a publicação de um vídeo oficial, produzido pelo INCAA, que mostra cenas emblemáticas da cinematografia argentina. “Não é só cinema. É cinema argentino”, diz, em tom categórico, a voz que narra o vídeo, do ator Ricardo Darín.

Sergio Massa, adversário de Milei nas eleições,  não perdeu a oportunidade de rebater a proposta do opositor. No início desta semana, o candidato da coalizão Unión por La Patria esteve presente em Mar Del Plata. Lá, discursando para atores, diretores e produtores, Massa disse que “o ataque à cultura é uma tentativa de tiro na alma dos argentinos”. “Quando escuto essa ideia de anular a cultura, o que escuto é o reflexo desse discurso permanente de que somos um país de m…, e não somos”. 

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