Cultura
O órgão da felicidade
Operado por manivela, protagoniza as festas dançantes de rua na zona leste de Cuba
Por Oliviero Pluviano
O segredo da felicidade? Para mim, a fórmula infalível é possuir um “órgão oriental, uma mistura de acordéon e orgue de barbaire francês, alimentado por rolos de papel perfurados que tocam son, danzon, rumba, mambo, chá-chá-chá e boleros cubanos acompanhados por congas, timbales, bongôs, maracás, reco-reco e tantos outros eletrizantes instrumentos de percussão latina.
Esse instrumento, operado por manivela, é o protagonista das festas dançantes de rua da zona leste da ilha caribenha de Fidel Castro. A primeira vez que o ouvi foi em um cais do porto de Santiago de Cuba, fiquei boquiaberto, igual aos pelicanos empoleirados nos navios ao redor, enquanto casais cubanos brancos e negros de todas as idades montavam uma coreografia perfeita com seu jeito espontâneo e feliz de dançar. Perto do órgão, com os tubos de madeira e as palhetas completamente à vista, tudo é ritmo. É posto em movimento pelo braço de um homem a girar incansavelmente a manivela da alavanca de ferro por trás do instrumento, que aciona os foles e ao mesmo tempo lê os rolos perfurados empilhados uns sobre os outros em retângulos rígidos, para liberar a música sincopada mais linda do mundo.
Na frente, grupos de músicos frenéticos acompanham as cadências e as acentuações que saem daquele oráculo imóvel e inumano e, sem parar nem por um segundo, agitam com um sorriso nos lábios suas mãos e baquetas endiabradas, seguindo as ordens ditadas pela orquestra escondida no “órgão oriental”. Anos a fio tentei comprar um da fábrica de Holguin onde ainda são produzidos, mas foi em vão por causa das dificuldades de importação, de transporte marítimo para o Brasil, de pagamento, talvez somadas a certo ciúme local por manter a exclusividade desse instrumento fantástico.
O pequeno órgão chegou pela primeira vez a Cuba com os exilados haitianos de um dos muitos levantes políticos do século XIX. Havia sido levado para a ilha quando era colônia francesa por fazendeiros gauleses que gostavam de dançar valsas, mazurcas e polcas. Em 1876, a família cubana Borbolla o fez chegar diretamente da fábrica Limonaire de Paris ao porto de Manzanillo, ligado à capital Havana por um trem que percorria os 700 quilômetros e que ultimamente foi desativado por causa de uma epidemia de cólera. Isso originou a profunda revolução musical que, à diferença da Europa, mantém até hoje em Cuba esse instrumento excepcional: os rolos perfurados começaram a ser feitos com a “música molida”, ou seja, as canções cubanas com as livres batidas autóctones no lugar das rígidas chansonettes francesas.
Em 1941, os irmãos Ajo difundiram ainda mais o “órgão oriental” com o acompanhamento de percussionistas. Procurem no YouTube, por “órgano de manzanillo”, a música Golpe de Bibijagua de Julio Cuevas, gravada durante a reunião oceânica de junho de 2000 pelo retorno de Elián González, o menino de 8 anos que virou manchete e esteve no centro de uma controvérsia entre os Estados Unidos e o governo cubano.
Na Casa de la Trova, em Santiago de Cuba, passei uma noite inteira aprendendo de um pianista local o tumbao, aquela originalíssima forma de acompanhar o son montuno com oitavas na mão direita e baixos antecipados na esquerda, que é o modo típico e inconfundível de tocar a música cubana no piano. Ao sair daquele legendário local de manhã bem cedo, nos surpreendemos ao ver a cidade destruída: durante a noite havia passado sobre ela um furacão que nós nem percebemos de tão concentrados sobre o teclado.
Hoje, em Cuba e na Flórida, há músicos cubanos excelentes considerados os herdeiros de Rubén González, o pianista que acompanhou Ibrahim Ferrer e Omara Portuondo no famoso Buena Vista Social Club. Mas Roberto Fonseca e Gonzalo Rubalcaba se distanciam cada vez mais do gênero cubano puro, embrenhando-se em um jazz à Keith Jarrett. Assim, nove anos após sua morte, o velho Rubén ainda é a bandeira do son cubano, ao lado, é claro, do imortal “órgão oriental”. •
Por Oliviero Pluviano
O segredo da felicidade? Para mim, a fórmula infalível é possuir um “órgão oriental, uma mistura de acordéon e orgue de barbaire francês, alimentado por rolos de papel perfurados que tocam son, danzon, rumba, mambo, chá-chá-chá e boleros cubanos acompanhados por congas, timbales, bongôs, maracás, reco-reco e tantos outros eletrizantes instrumentos de percussão latina.
Esse instrumento, operado por manivela, é o protagonista das festas dançantes de rua da zona leste da ilha caribenha de Fidel Castro. A primeira vez que o ouvi foi em um cais do porto de Santiago de Cuba, fiquei boquiaberto, igual aos pelicanos empoleirados nos navios ao redor, enquanto casais cubanos brancos e negros de todas as idades montavam uma coreografia perfeita com seu jeito espontâneo e feliz de dançar. Perto do órgão, com os tubos de madeira e as palhetas completamente à vista, tudo é ritmo. É posto em movimento pelo braço de um homem a girar incansavelmente a manivela da alavanca de ferro por trás do instrumento, que aciona os foles e ao mesmo tempo lê os rolos perfurados empilhados uns sobre os outros em retângulos rígidos, para liberar a música sincopada mais linda do mundo.
Na frente, grupos de músicos frenéticos acompanham as cadências e as acentuações que saem daquele oráculo imóvel e inumano e, sem parar nem por um segundo, agitam com um sorriso nos lábios suas mãos e baquetas endiabradas, seguindo as ordens ditadas pela orquestra escondida no “órgão oriental”. Anos a fio tentei comprar um da fábrica de Holguin onde ainda são produzidos, mas foi em vão por causa das dificuldades de importação, de transporte marítimo para o Brasil, de pagamento, talvez somadas a certo ciúme local por manter a exclusividade desse instrumento fantástico.
O pequeno órgão chegou pela primeira vez a Cuba com os exilados haitianos de um dos muitos levantes políticos do século XIX. Havia sido levado para a ilha quando era colônia francesa por fazendeiros gauleses que gostavam de dançar valsas, mazurcas e polcas. Em 1876, a família cubana Borbolla o fez chegar diretamente da fábrica Limonaire de Paris ao porto de Manzanillo, ligado à capital Havana por um trem que percorria os 700 quilômetros e que ultimamente foi desativado por causa de uma epidemia de cólera. Isso originou a profunda revolução musical que, à diferença da Europa, mantém até hoje em Cuba esse instrumento excepcional: os rolos perfurados começaram a ser feitos com a “música molida”, ou seja, as canções cubanas com as livres batidas autóctones no lugar das rígidas chansonettes francesas.
Em 1941, os irmãos Ajo difundiram ainda mais o “órgão oriental” com o acompanhamento de percussionistas. Procurem no YouTube, por “órgano de manzanillo”, a música Golpe de Bibijagua de Julio Cuevas, gravada durante a reunião oceânica de junho de 2000 pelo retorno de Elián González, o menino de 8 anos que virou manchete e esteve no centro de uma controvérsia entre os Estados Unidos e o governo cubano.
Na Casa de la Trova, em Santiago de Cuba, passei uma noite inteira aprendendo de um pianista local o tumbao, aquela originalíssima forma de acompanhar o son montuno com oitavas na mão direita e baixos antecipados na esquerda, que é o modo típico e inconfundível de tocar a música cubana no piano. Ao sair daquele legendário local de manhã bem cedo, nos surpreendemos ao ver a cidade destruída: durante a noite havia passado sobre ela um furacão que nós nem percebemos de tão concentrados sobre o teclado.
Hoje, em Cuba e na Flórida, há músicos cubanos excelentes considerados os herdeiros de Rubén González, o pianista que acompanhou Ibrahim Ferrer e Omara Portuondo no famoso Buena Vista Social Club. Mas Roberto Fonseca e Gonzalo Rubalcaba se distanciam cada vez mais do gênero cubano puro, embrenhando-se em um jazz à Keith Jarrett. Assim, nove anos após sua morte, o velho Rubén ainda é a bandeira do son cubano, ao lado, é claro, do imortal “órgão oriental”. •
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