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No meio do minério, a arte

Como a instituição, após várias crises, lida com a memória da tragédia e retoma a marca de 300 mil visitantes anuais

No meio do minério, a arte
No meio do minério, a arte
Exuberância. As galerias Hélio Oiticica e True Rouge são algumas das mais populares dentre as 24 espalhadas pelo Jardim Botânico que reúne 4,3 mil espécies de plantas – Imagem: Julia Lanaro e Ana Clara Martins
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O Instituto Inhotim completa, em 2024, 18 anos de existência. E, no caso do projeto criado por Bernardo Paz, em Brumadinho (MG), a maioridade parece vir, de fato, acompanhada da conquista de certa autonomia.

A história do museu, que possui 1,8 mil obras exibidas em galerias cheias de personalidade, instaladas em um Jardim Botânico deslumbrante, reflete, por sua origem e pelas sucessivas crises pelas quais passou, a história das instituições museológicas brasileiras, nas quais público e privado quase sempre se imiscuíram.

E a transição pela qual vem passando também parece decorrer de um processo mais amplo de institucionalização da cultura no País, com a passagem da liderança individual para uma nova governança. “O ano de 2023 foi de mudanças estratégicas e estruturais”, diz a diretora-presidente, Paula Azevedo. “Este será o ano de implementação de novas políticas, como as de acessibilidade, e de aprofundamento da relação com o território.”

Na programação anunciada na quarta-feira 21, a curadoria destacou a presença de dois artistas negros, Grada ­Kilomba e Paulo Nazareth, nas mostras temporárias, e a criação de um festival internacional de música (ler texto à pág. 52). A abertura do museu a artistas afrodescendentes havia se iniciado em 2021, com o programa Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra, em parceria com o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro).

Com as dificuldades financeiras enfrentadas a partir de 2016, um surto de febre amarela, o acidente da Vale e a pandemia de Covid, o museu correu o risco de fechar

A história do Inhotim, nascido da coleção formada por Bernardo Paz, sócio do conglomerado Itaminas – ligado à mineração – a partir dos anos 1980, pode ser dividida em duas partes. Ambas espelham tanto as contradições do País quanto as possibilidades trazidas pela cultura.

A primeira parte foi a da bonança, com abertura das galerias a céu aberto e expansão do colecionismo. Ela durou até o fim de 2015. Nesse ano, enquanto o museu parecia ganhar solidez, Paz passava a ser investigado pelo Ministério Público por lavagem de dinheiro em algumas empresas. Nesse momento, começaram a pairar sobre a instituição as nuvens antecipatórias das tempestades que estavam por vir.

Em 2016, Paz chegou a ser condenado pela Justiça, tendo sido posteriormente inocentado. Em 2017, sob a gestão de Antonio ­Grassi, ensaiou-se a mudança para um modelo menos personalista. A estrutura ainda tinha, porém, características incompatíveis com uma efetiva institucionalização.

Em 2018, para piorar tudo, houve um surto de febre amarela em Brumadinho e o Inhotim passou a exigir, dos frequentadores, comprovante de vacinação. A queda no número de visitas foi imediata. Um estudo feito posteriormente pela ­Accentureor apontou que, naquele momento, o Inhotim correu o risco de fechar.

Comunidade. Desde o rompimento da mina Córrego do Feijão, em 2019, vigora o projeto Nosso Inhotim, que faculta aos moradores do município o cadastro para acesso gratuito ao museu – Imagem: Eric Marmor/Exército de Israel

E o ano seguinte começou, tragicamente, com o rompimento da mina Córrego do Feijão, da Vale, que deixou 270 mortos e uma marca com a qual a cidade segue a lidar. Se, até então, Brumadinho remetia ao museu, o nome, de repente, passou a estar ligado ao grave acidente ambiental.

Embora não tenha sido fisicamente atingida pela lama que correu cidade abaixo, a instituição, que fica a 20 quilômetros da mina, fechou por 15 dias e teve de lidar com o luto – 80% dos funcionários são moradores da cidade. Em 2019, a visitação, obviamente, despencou.

O ano de 2020, por sua vez, mal começou e, em março, entraram em vigor as medidas de emergência sanitária para conter a pandemia de Covid-19. O Inhotim, como quase tudo, passou um tempão fechado, e viu o público novamente minguar – apenas 48 mil pessoas lá estiveram.

No ano seguinte, finalmente, a sobreposição de crises começaria a estancar. Em 2021, chegaram à instituição Lucas Pessôa, à frente do museu até o fim do ano passado, e Paula Azevedo, que assumiu o cargo de diretora-presidente em janeiro. Juntos, e tendo à frente de si a consultoria financeira da Ernst & Young, eles estabeleceram três eixos de atuação.

Governança. Em 2022, Bernardo Paz, fundador do Instituto Inhotim, fez a doação definitiva de 326 obras de sua coleção e de uma área de 140 hectares – Imagem: Brendon Campos

“Logo que chegamos, dissemos: Inhotim foi fundado pelo Bernardo, mas, para continuar existindo, tem de se tornar uma instituição pública”, conta Pessôa. Nascia assim o slogan O Inhotim de Todos e para Todos.

Para que as palavras saíssem do campo das ideias, foi preciso, de saída, estabelecer uma governança que garantisse, por meio de um Conselho, a participação da sociedade nas decisões. Mas o grande passo seria dado em junho de 2022, quando Paz fez a doação definitiva de 326 obras de sua coleção e da área de 140 hectares.

“Esse processo, construído aos poucos, foi a maior doação privada das artes já feita no Brasil”, diz Pessôa, que foi diretor do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e lembra, na conversa com CartaCapital, que a dependência das figuras dos fundadores já feriu muitos projetos culturais. “As ­pessoas vão envelhecendo na liderança e, muitas vezes, se fechando para a sociedade.”

Na primeira década dos anos 2000, a Bienal de São Paulo, idealizada por ­Ciccillo Matarazzo, chegou a um impasse institucional e financeiro que quase inviabilizou sua 28ª edição, em 2008 – tornada a ­Bienal do Vazio. Em 2013, o Masp, criado por ­Pietro Maria Bardi e Assis ­Chateaubriand, chegou à beira do abismo, sem conseguir sequer pagar os funcionários.

Curadoria. Mestre Didi, exibido em uma mostra temporária em 2023, faz parte do projeto destinado a abrir o museu para artistas afrodescendentes e indígenas – Imagem: Carolina Evangelista

Como disse, certa vez, Heitor Martins, que assumiu a Bienal e o Masp no pico das crises, os inegáveis atributos das duas instituições não se mostraram suficientes para torná-las viáveis. O Inhotim ia pelo mesmo caminho. O Conselho, na visão de Pessôa, funciona como um anteparo contra a perpetuação nos cargos. E não só.

“Os conselheiros estão ali para servir ao museu, e não o contrário”, diz Pessôa. “O Inhotim não tem dotação pública, então ele precisa da sociedade. Ao mesmo tempo, os conselheiros só fazem doações porque não se trata mais de uma coleção privada.” O Conselho conta com 28 nomes, que vão de grandes empresários e banqueiros a artistas.

Remodelada a governança, tornou-se factível também o projeto de sustentabilidade de longo prazo. Em 2023, a Vale comprometeu-se a fazer um aporte de 400 milhões de reais ao longo de dez anos. O patrocínio da empresa, embora existisse desde 2008, nunca tinha sido tão vultoso. E o volume está ligado tanto à tragédia de Brumadinho quanto à gestão profissional.

“A relação da empresa com o Inhotim existe, praticamente, desde que o museu foi criado, mas, nos últimos três ou quatro anos, essa relação foi mudando porque o Inhotim sofreu os impactos do rompimento da barragem”, diz Hugo Barreto, diretor-presidente do Instituto Cultural Vale. “A gente foi se convencendo de que tinha de ajudar o Inhotim a não se exaurir.”

O acordo prevê que os 400 milhões de reais – metade verba incentivada, metade investimento próprio – sejam utilizados, em parte, para garantir que o projeto O Inhotim de Todos e para Todos se complete. Após a doação de Paz, pode-se dizer que a primeira parte da frase se cumpriu. A segunda, segue como um ideal.

“No nosso acordo”, enfatiza Barreto, “estão previstas a abertura para mais gente e a criação da possibilidade de fruição de alguns conteúdos a distância, online. Além disso, há o compromisso de que se trabalhe a dimensão do território”, diz.

Passados quatro anos do rompimento da barragem, a Vale aportou 400 milhões de reais para ajudar a salvar a instituição

Na cidade de solo ferroso, o ponto onde a barragem se rompeu ainda é, para a população, o mais visível de todos. Passados cinco anos, o desastre ambiental segue a definir os sentimentos dos moradores em relação ao lugar em que vivem. E um dos desejos da Vale é que o Inhotim e o turismo puxado por ele se tornem outro vetor de desenvolvimento e de modo de vida.

São conhecidos, na literatura internacional sobre as indústrias criativas, os casos de cidades que foram revitalizadas ou tiveram suas vocações econômicas transformadas a partir da criação de equipamentos culturais – e, em especial, museus – capazes de atrair interesses e investimentos externos. Nos projetos sonhados para Brumadinho estão incluídas, como atrativos complementares ao Inhotim, as comunidades quilombolas, os artesãos ceramistas e o turismo de aventura nas cachoeiras dos arredores.

Em novembro deste ano, será inaugurado, ao lado do parque, um hotel-butique a ser administrado pelo Grupo Clara Resorts, que, até 2029, deve erguer ali um resort. Os dois empreendimentos, de acordo com o material de divulgação, ampliarão em 30% os leitos disponíveis em Brumadinho e gerarão cerca de 600 empregos diretos e mil indiretos.

Hoje, o Inhotim oferece 500 empregos diretos e 200 indiretos. Até a abertura do museu, o trabalho vislumbrado pelos jovens de Brumadinho era na mineração. Desde então, várias outras carreiras – ligadas a jardinagem, marcenaria, tecnologia etc. – se tornaram possíveis.

Cristiano Maciel, gerente de Operações do Inhotim, era um dos jovens da cidade que planejavam, para o futuro, um curso técnico de segurança do trabalho para atuar na mineração. Mas, no 2º ano do Ensino Médio, foi selecionado para integrar um programa de formação ampla em artes. “Foi uma experiência incrível e, em junho de 2007, consegui aqui meu primeiro emprego com carteira assinada”, conta.

Maciel foi monitor, operador de caixa e fez atendimento telefônico até chegar à área de eventos e assumir, em 2018, a área de operações. “Ao contrário do que acontecia comigo e meus amigos, hoje os jovens já crescem com a percepção de que é possível trabalhar no Inhotim.”

O que segue a soar pouco possível, para a população, é ter o museu como espaço de lazer e fruição. “Temos exercitado a escuta da comunidade. O que esse território quer?”, pergunta, ainda sem ter resposta, Luiza Verdolin, supervisora na Diretoria de Educação. “Hoje, a maioria dos moradores ao menos sabe da existência do Inhotim. Mas a dificuldade de acesso é enorme, até porque não tem transporte público para cá.”

Um funcionário do hotel no qual ­CartaCapital se hospedou, afirmou: “As coisas devem ser bonitas lá, mas, para a gente, não tem muito interesse, e todo mundo diz que até para tomar um café é caro”.

Desde 2019, vigora o projeto Nosso Inhotim, que faculta aos moradores o cadastro para acesso gratuito ao parque. Dos 40 mil habitantes, 9 mil se cadastraram. Em julho passado, foi estabelecida a gratuidade às quartas-feiras – antes, ela era limitada ao último domingo de cada mês.


INHOTIM RECEBERÁ FESTIVAL DE MÚSICA

O Instituto, que mantém uma orquestra e um quarteto de cordas, vai sediar, em julho, artistas dedicados à música contemporânea

por Ana Paula Sousa

Viola. Natália Braz, ex-aluna da Escola de Cordas, é hoje uma das integrantes da orquestra – Imagem: Brendon Campos

Nascido em Mário Campos, município vizinho de Brumadinho, Marcelo Faccion, que desde criança sonhava tocar violino, entusiasmou-se ao saber que havia no Inhotim, lugar que sempre pensou ser apenas um museu, uma orquestra. E ficou mais contente ainda ao descobrir que um ônibus podia levá-lo até lá.

Embora, ao entrar na Escola de Cordas de Inhotim – que foi fundada em 2012 e atende crianças de 6 a 16 anos –, Faccion não tenha conseguido realizar o sonho do violino, ele conheceu outro instrumento pelo qual se apaixonou: o violoncelo.

Hoje ex-aluno da escola, o músico trabalha como monitor dos novos alunos e integra a Orquestra Inhotim, formada por jovens profissionais, graduados ou graduandos em faculdades de música de Minas Gerais.

Natália Braz, sua colega na monitoria e na orquestra, chegou ao Inhotim por meio de vivência com instrumentos de sopro. Mas acabou escolhendo a viola. “Foi aqui que conheci a música em um ambiente voltado à profissionalização. Antes, eu tocava nas bandas da cidade”, diz ela.

Além da orquestra, regida pelo maestro Leandro Oliveira, o Instituto mantém o Quarteto Inhotim, formado por professores da Escola de Música e líderes de naipe da Orquestra. Ambos os grupos se apresentam no parque.

Este ano, no mês de julho, ampliando o lugar da música em seu espaço, o Inhotim realizará o primeiro Festival Internacional de Música, voltado à música contemporânea nacional e internacional.

As apresentações serão gratuitas para os visitantes do Inhotim. Dentre os artistas já confirmados, estão Aguidavi do Jêje (Brasil), Ballaké Sissoko (Mali), Baloji (Congo), Joshua ­Abrams & Natural Information ­Society (EUA), Kham Meslien (França) e Zoh Amba (EUA). Outros serão anunciados nos próximos meses.

Publicado na edição n° 1299 de CartaCapital, em 28 de fevereiro de 2024.

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