Cultura

Maria José da Silva usa os mitos para retratar a exploração do País 

Em ‘Aqui. Neste lugar’, a escritora parte de Mário Andrade e cria uma fantasia sobre a luta contra a opressão

“Mário de Andrade é ‘santo da minha devoção’, a quem amei desde a primeira leitura”, conta Silveira (Foto: Zé Gabriel)
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O romance Aqui. Neste lugar (Autêntica Contemporânea, 224 págs., 59,80 reais), de Maria José Silveira, começa com uma dedicatória a Mário de Andrade: “Mas não me acusem de indevida apropriação: me acusem de devido amor.” O autor de Macunaíma é presença constante nessa história distópica, situada num Brasil anterior à chegada dos europeus. 

“Mário de Andrade é ‘santo da minha devoção’, a quem amei desde a primeira leitura”, conta Silveira a CartaCapital. “Mesmo assim, me senti meio ousada e, por isso, tentei dar minhas explicações e pedir desculpas a quem achasse que fui longe demais. Mário era um espírito aberto, irreverente, brincalhão, e ele também se apropriou e transformou, em seus livros, mitos indígenas como Macunaíma.”

A declaração de amor a Mário está também na escolha da narradora: Ci Mãe do Mato, que se tornou uma estrela ao final de Macunaíma, e, nessa posição pode agora observar tudo de cima, e ter uma visão mais ampla dessa terra em profunda transformação. Já Macunaíma é cindido em dois: Macu, esperto e engraçado; e seu irmão, Naíma, que quer uma vida preguiçosa, dormindo, fumando e comendo. 

Transitando entre o realismo e a fantasia, Silveira cria uma narrativa, ao mesmo tempo histórica e mítica, que tem origem nas memórias de sua infância. “A menina que eu fui passava as férias em uma cidade histórica do interior de Goiás, onde o vento nas ruas de terra vermelha trazia redemoinhos com sacis, onde velhas casas de portas rangedoras eram mal-assombradas, onde no maior rio da região moravam almas, e à noite escutávamos histórias da minha avó e do violeiro Tião, cuja voz grossa nos deixava de cabelo em pé.” 

Aqui. Neste Lugar. começou a ser escrito entre 2105 e 2106, quando a autora passava por um momento doloroso com a doença de um irmão, hospitalizado. “Quando eu voltava para casa, depois de visitá-lo, não queria pensar na realidade que estávamos vivendo. Foi então que pensei nos mitos e seres folclóricos que faziam parte das minhas memórias afetivas.”

Embora Macu e Naíma sejam espécie de força organizadora da narrativa, a trama se abre a diversos personagens e seus dramas e embates históricos e pessoais. A própria terra, a natureza, as águas, as florestas e seres míticos se apresentam como nossos aliados e saem em nossa defesa em uma guerra épica que, por um tempo, deixará a Terra sem Males em paz. 

Silveira pondera que o gênero fantasia, mesmo com todas as suas possibilidades de percepção, ainda é visto com algo escrito para crianças. “Isso talvez aconteça pelo fato de sermos um povo cheio de preconceitos. Na literatura, o preconceito acontece também com o gênero policial. E com a poesia. Apesar de toda a nossa diversidade, somos um povo social, política e culturalmente um tanto fechado para o que não está no precário mainstream.”

Mesmo na fantasia, a escritora mantém intacta uma característica de sua obra: a presença de figuras femininas fortes e marcantes: “As mulheres por tanto tempo foram tornadas invisíveis que, tirá-las dessa obscuridade, sempre foi algo muito natural e presente em minha literatura, desde meu primeiro romance.”

Em Aqui. Neste lugar há as icamiabas, mais conhecidas como amazonas, e muitas outras mulheres, além da narradora Ci do Mato, e Véi, a sol, “outro empréstimo de Mário de Andrade: transformar o grandioso sol em fêmea, não é espetacular?”

Todo esse universo não deixa de ser uma investigação do Brasil do presente, numa história de personagens oprimidos pela violência e as diferenças de estrato social. “Este romance tem algo a dizer sobre a eterna luta do nosso país contra os que procuram aqui apenas as benesses das elites e das riquezas que podem nos tirar”, diz ela. “Entendo a Terra sem Males como o que poderíamos ser um dia, quando conseguirmos derrotar a crueldade do povo do Eldorado e seu exército de mercenários, para quem a força bruta, as armas e a ambição são as ferramentas que sempre os tornam vencedores. Só que não.”

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