Lirinha: “O território da arte é criativo e político”

O músico fala do retorno do Cordel do Fogo Encantado, banda que completa 20 anos

Lirinha e o Cordel do Fogo Encantado (Foto: Divulgação)

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No último Carnaval, uma das bandas mais inventivas do País completou 20 anos. Foi em um palco na folia de 1999 no Recife, no período pós-mangue beat, mas ainda influenciado pelo movimento, que o Cordel do Fogo Encantado ganhou reconhecimento.

Naquela data, o compositor e percussionista Naná Vasconcelos, morto em 2016, foi até o camarim para saudar o grupo. Dois anos depois ele próprio produziu o antológico primeiro CD do Cordel do Fogo Encantado.

A participação de Naná no início da carreira da banda endossou com maestria o que ela fazia: música fora do mercado e original, com poesia e arte cênica combinada com sons e ritmos a base de percussão. Nesse último item, Naná observou protagonismo raro do instrumento que o fez ser reconhecido como um dos grandes mestres no mundo.

Depois vieram mais três registros fonográficos, até a banda interromper a bem-sucedida trajetória musical em 2010. No ano passado, o Cordel do Fogo Encantado se reuniu novamente e lançou o CD Viagem ao Coração do Sol.

Temas urgentes tiveram, no entanto, que ser absorvidos nesta nova fase pelo grupo composto por Lirinha (voz), Clayton Barros (voz e violões), Nego Henrique (voz e percussões), Emerson Calado (voz e percussões) e Rafael Almeida (voz e percussões).

“Entendemos que voltamos para um mundo modificado desde a pausa, principalmente pelas redes sociais”, diz Lirinha. “Isso exigiu compreensão do cenário”.


O novo momento para o cantor, compositor e poeta envolve questões complexas, como a intolerância religiosa, as demandas dos movimentos feministas e LGBT, além da perseguição à juventude negra. “Não dá mais para dizer que não viu”, afirma o músico.

Segundo ele, não tem como alguém que se considera artista sem entendimento desse quadro. “Não existe eu faço música e esse é o meu território. O território da arte é um território político”, ressalta.

Naná Vasconcelos produziu a banda (Foto: Wikimedia)

As intensas relações que a apresentação artística mantém com a sociedade, afirma, impõe essa posição. “O artista é um ser político. Ele pode se ausentar, se acovardar de dar opinião, mas continuará um representante de uma proposta. A principal característica dele é criar um novo espaço no tempo. Qualquer arte é profética”.

O Cordel do Fogo Encantado tem elementos na sua origem contundentes de seu papel de propor discussões. O grupo se formou em Arcoverde, no sertão pernambucano, onde as urgências de um país pobre costumam bater à porta antes do que muitos lugares – como a falta d’água, por exemplo.

Chuva e liberdade

O maior sucesso da banda, a música Chover (ou Invocação para um dia líquido, de Lirinha e Clayton Barros), gravada no primeiro disco, é uma exaltação à chuva, um dos maiores símbolos da crítica do Nordeste.

“Pedimos a chuva no sentido de transformação. Ela acompanhou a nossa existência. Ela é desejada, recebida. Um mito na minha região”, relata Lirinha.

Nos dias atuais, além de chuva, o Cordel do Fogo Encantado louva a liberdade.

As 13 faixas de Viagem ao Coração do Sol, produzido por Fernando Catatau, mostram em letras metafóricas e de sentimentos humanos um novo despertar dos cinco integrantes do grupo ao encontro com a autonomia.

“É o disco mais cancioneiro de todos. É onde podemos aplicar a palavra maturidade”, menciona Lirinha. O músico conta que durante a parada, de 2010 a 2018, os integrantes do grupo, cada um na sua maneira, viveu o exercício da liberdade de criação: “Se somos livres, por que vivemos acorrentados por todos os lados?”

No som a base da percussão, o Cordel do Fogo Encantado foi então declamar a esperança. Na canção Conceição ou Do Tambor que se Chama Esperança (a composição é assinada pelos cinco integrantes do grupo), traça-se “uma homenagem às mulheres negras guerreiras da nossa história”, como Marielle Franco.

Cita-se que Conceição refere-se ao Morro da Conceição, no Recife, onde os músicos e ogãs Nego Henrique e Rafael Almeida foram criados – o restante da banda é arcoverdense.


Dentro ainda da necessidade de absorver o novo momento, os shows da banda pós-retorno passaram a contar com a participação da jovem cantora pernambucana Isadora Melo.

“Uma banda só de homens diminuiria nossa mensagem. Não é mais possível fazer um trabalho sem a presença delas. Essa nova geração nos permite diálogo com o público hoje”, explica Lirinha.

José Paes de Lira, o Lirinha, “líder simbólico”, como prefere ser chamado, do Cordel do Fogo Encantado, fala em etnocídio e a escravidão vivido pelos seus antepassados em sua região de origem – e o conhecido êxodo rural.

“Acho importante muda de lugar. Mas o êxodo dessa forma é poucas vezes uma opção. Ele termina sendo opressor. Muitos gostariam de ficar ali no interior”, comenta, para justificar por que a banda tem grande identidade com os rincões: “Discutimos essa condição de as pessoas darem as costas para o interior do país”.

O Cordel do Fogo Encantado é um exemplo categórico da criatividade, da fronteira da poesia, da música e do teatro, e do quanto a arte pode e deve ser instrumento de formação de conceitos de uma sociedade mais justa.

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