Cultura

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A vaca do disco do Pink Floyd me levou até a fazenda. Ao ouvir ‘Atom Heart Mother’, fecho os olhos e me lembro de Dora. Por Alberto Villas

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Quase quarenta anos depois resolvi abrir o caderno de capa dura que andava lacrado todos esses anos e reler algumas passagens do livro que comecei a escrever quando ainda era muito jovem, jovem e cabeludo. Confesso que me senti assim meio um cabra marcado para morrer, um engenheiro que virou suco ou coisa parecida. Tenho dúvidas se essa obra que nunca teve fim hoje me representa. Compartilho, então, com vocês, um trecho aleatório do que chamei um dia de Projeto Ex. São palavras perdidas no tempo e no espaço.

Aquela vaca na capa do disco do Pink Floyd me levou até a Fazenda do Sertão. Não que aquela ruminante preta e branca e gorda tão saudável tivesse a ver com Mimosa, vaca magra do sertão de Minas Gerais. Em Paris, todos os dias esboço em papéis Canson a fazenda modelo que Chico Buarque me ensinou. Nunca chegou a ser um projeto mas ali estava anexado em forma de fotografia, quase um xerox amarelado, Dora com os seus olhos verdes debruçada na varanda a olhar para mim. Talvez ela fosse o motivo da minha saudade hoje a dez mil quilômetros de distância porque, no fundo no fundo, o que tinha ali naquela fazenda nada modelo era uma fábrica de rapadura, uma dúzia de galinhas d’angola gritando tô fraca tô fraca tô fraca, um paiol onde debulhávamos milho, um forno de barro onde assávamos biscoitos de polvilho e um porco morto no chão de terra, sangrando.

Ao ouvir Atom Heart Mother fecho os olhos e só me lembro de Dora. Onde ela estaria hoje, como estaria é o que me pergunto. Os caminhos para chegar ao sertão eram tortuosos, cheios de barro e muito capim meloso. Aqui a neve transforma em lama o piso do asfalto que reflete no vidro da janela da cozinha da minha casa onde a geleia de laranja amarga é um sucesso entre os exilados, ao lado do pão preto em cima de uma toalha vermelha estendida no chão. Pingos lá fora não me levam a lugar algum. Os protestos sim.

O sotaque pernambucano de Miguel Arraes há mais de dez anos fora do Brasil me impressiona. Não mistura línguas, não troca lixeira por poubelle, gasolina por essence, geladeira por frigô, não titubeia ao dizer que a democracia um dia vai voltar ao país tropical. Acho também que sim, coçando a cabeça e procurando caracóis debaixo dos meus cabelos, enquanto a sopa pronta da Knorr Suiça ferve a fogo brando e os pedaços de pão ali ao lado esquentando.

Uma luz de abajur ilumina o papel de carta em branco, sei que preciso responder uma a uma. Nem cheiro de exílio no ar sinto mas um clima de nostalgia sai do vinil exposto ao sol gelado do inverno lembra uma velha canção dos Beatles ou quiçá um disco para entendidos que fala de sugar cane fields forever, tão distante de strawberry fields forever que não havia na Fazenda do Sertão  esquecida na memória apesar do produto rapadura ter vindo à tona hoje.

Dormir lendo a revista Planeta é um pouco demais pra minha cabeça. Não há discos voadores  sobrevoando Paris nesse janeiro e nenhum sinal de vida extraterrestre me tirando o sono. Quando fecho os olhos enxergo girinos nadando no laguinho da Chácara de Dona Catarina em busca de musgos para sobreviver. E o Manequinho fazendo xixi em Cataguases enquanto ali perto Rosário Fusco bebe sem parar doses cavalares de Pastis 51 e Ricard  Anisette numa mansão decadente onde o disco mais novo é um longplay de Noel cantando Três Apitos, apitos da fábrica de tecidos que vem ferir os meus ouvidos e que me faz lembrar os olhos verdes de Dora que só hoje arreparei porque se arreparasse a mais tempo não amava quem amei. Arrenego de quem diz que o nosso amor se acabou, ele agora está mais firme do que quando começou.

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