Cultura

Entrevista: KL Jay e o poder atemporal do hip-hop em seus 50 anos

Celebrando 35 anos de carreira, o DJ dos Racionais MCs fala a CartaCapital sobre o legado e as evoluções do rap e da cultura hip hop no Brasil

Em CartaCapital, KL Jay, dos Racionais MC's, debate a contribuição da negritude brasileira da diáspora no hip-hop — Foto: Renato Luiz Ferreira/CartaCapital
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“É maior do que uma religião, do que um governo, é uma forma de existir”. Para Kleber Simões, conhecido como KL Jay dos Racionais MC’s,  esta é uma das melhores sínteses do que é a cultura hip-hop — cunhada pela cantora americana Erykah Badu, na música The Healer.

Nascido em berço afro, através de artistas estabelecidos em Nova York, o movimento completa neste ano o movimento completa meio século de existência

A expressão artística envolve não apenas o rap, como gênero musical, mas também a dança, com o street dance, as batalhas de rima, o grafite, os saraus, as roupas, entre outras manifestações.

Em solo brasileiro, foram os Racionais MC’s, um dos grupos que mais marcaram a expansão e o reconhecimento desta cultura negra da diáspora. 

O pontapé aconteceu quando Kleber e Edi Rock visitavam o antigo Clube do Rap, na região central de São Paulo. Em uma apresentação deles no local, os rappers Mano Brown e Ice Blue os conheceram e dali surgiram os Racionais. 

A história do grupo se mistura e conta sobre a expansão do movimento hip-hop no Brasil. A primeira gravação do grupo, por exemplo, aconteceu quando o selo Zimbabwe Records lançou a coletânea Consciência Black, Vol. I. Até então, “a indústria era nula”, afirma KL Jay a CartaCapital.

Atualmente, os Racionais MC’s já ganharam mais de dez prêmios e são reconhecidos por ousar contar as histórias “da ponte pra cá”, em uma época que as grandes gravadoras não reconheciam o gênero – ou quando reconheciam, diziam: “Essas músicas que vocês fazem aí de preconceito e racismo não viram, o que vira é refrão alegre, falar besteira”, conta KL Jay.

Ainda sem gravadora e ganhando pouco dinheiro, a jornada era dupla. “O que nós ganhamos por show [no início], colocando na faixa de hoje, eram uns 200 reais. Cada um ia embora com cinquenta no bolso”, diz KL Jay, que trabalhava como carregador de mala na Rodoviária do Portuguesa-Tietê.

Hoje o DJ, além da gravadora que possui com o grupo, tem uma gravadora própria, um selo musical, uma marca de roupas e produz festas, como a Time Code. A partir disso, Kleber Simões se estruturou como empresário. 

Nas músicas do grupo, sempre foram contundentes as críticas e denúncias ao sistema penitenciário, como na música Diário de um Detento, que fala sobre o Massacre do Carandiru, a falta de oportunidade entre negros e brancos, pobres e ricos, além do enaltecimento da população preta.

Este último fator uniu e fortaleceu gerações. Muitos apontam que as histórias descritas naquelas canções, além de se conectarem com suas próprias trajetórias, fizeram com que abrissem a sua mentalidade para outras perspectivas mais prósperas de vida.

KL Jay afirma que a permanência do gênero em diversas gerações se deve ao “poder da atemporalidade”, uma conquista do movimento.

“Está no poder da música que é atual, é forte. Não é só a batida e a letra, é o jeito de cantar. O hip-hop é jovem, o lance da autoestima, a música em si, a trilha, o DJ tocar com toca disco, fazer performance, isso é jovem, a própria batida”, afirma. 

Mas, para conseguir manter esta identidade, na história dos Racionais foi necessário a busca por uma gravadora própria, “quem não tinha, precisava se submeter ao que os caras queriam”, diz KL Jay. “O black money foi uma conquista, o lance de gerar autonomia, de gerar empresas independentes, você ser dono da sua música, da sua empresa, você ser dono do fonograma, ter o direito autoral. Tudo isso é avanço e exemplos para os demais”.

Com cinco filhos e dois deles no cenário artístico, o DJ Kalfani e a cantora Hanifah, KL Jay aposta que o futuro até o centenário do hip-hop está no fortalecimento do black money, e que ainda falta, “no caso do rap, pelo menos duas rádios tocando rap 24 horas. Isso movimenta festa, show, festival, movimenta toda a cena [artística]”.

O 1º Festival Internacional de Rap realizado no Brasil, foi feito por Ice Blue, dos Racionais MC’s, em 1999 na capital paulista. E o primeiro evento itinerante só foi feito 18 anos depois, com o Flow Festival, no Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

​​’O rap é a grande trilha sonora da diáspora’ 

Esta análise de movimento passado, presente e futuro do Hip-Hop está exposta no Festival Sample, em São Paulo, criado pelo DJ para celebrar os 35 anos de carreira: “O hip-hop é o amor da minha vida, abriu portas do conhecimento que eu nunca ia ter se eu fizesse uma universidade”, relata KL Jay.  

O sample que dá nome ao Festival, faz referência a criação de uma melodia, de uma batida, através da menção a outros artistas através de trechos (ou partes inteiras) de músicas já existentes.

“Ele é uma síntese, traz uma história. Ali a gente também está dando satisfação a quem atravessou o oceano, porque não tem nem 150 anos da abolição”, conta Leandra Roberta da Silva, co-curadora do evento, que levou seis anos até o lançamento oficial. 

Durante 16 dias, entre exposições e debates, é proposto uma volta no tempo para entender os impactos da cultura na sociedade e na formação dos próprios artistas. “É você entender o rapper como um intelectual, o tanto que estuda, que tem que saber de música. Ele sabe coisas, 35 anos são 5 doutorados. E esses eram meninos enquadrados, considerados bandidos porque o homem negro nunca é o príncipe em um cavalo branco, nunca é o Ken. E aí, você vai enfrentar essa narrativa e dizer: esse cara é intelectual“.

Festival Sample
De 12 a 30 de agosto de 2023
Centro Cultural São Paulo*
Rua Vergueiro, 1000 – Paraíso, São Paulo
*Ingressos para as atividades especiais serão disponibilizados para reserva na bilheteria online e presencial, uma semana antes da abertura do festival.

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