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Disfarces em disputa

O conceito de fake news deixou de corresponder apenas às informações falsas para virar também uma arma de combate

Imagem: Gustav Doré/Pilar Velloso
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O conceito de fake news tornou-se uma espécie de argumento de acusação, uma arma para se combaterem os adversários. Acredita-se que as notícias falsas são aquelas veiculadas pelo “inimigo”. Nesse sentido, a acusação deriva da crença, não propriamente daquilo a que se refere.

É sempre possível desmascarar a falsidade do outro. O presidente da República referiu-se à destituição de ­Dilma Rousseff como golpe. A imprensa conservadora reagiu dizendo: “É fake news”. A destituição, para eles, teria sido feita de acordo com as regras institucionais do Congresso.

A esquerda responde: “Outra fake news da Globo e dos jornalões”. A controvérsia gira em falso, opondo versões antagônicas dos fatos e enredando a argumentação numa inescapável série de equívocos.

As coisas podem, porém, ser pensadas de outra maneira. A noção de fake news implica a existência de algo objetivo que, em princípio, contrasta com sua distorção. Ou seja, ela é um disfarce que pode ser desmentido. O termo implica ainda a ideia de intenção: manipular informações com intuito persuasivo.

Fake news é uma adulteração consciente para se atingir determinado fim. Ela possui o poder “viral” de se disseminar enquanto verdade. Por isso proliferam sites de notícias que indicam a falsidade do que é apresentado ao público – caso do site Aos Fatos. Eles checam os fatos e remontam fotos e vídeos utilizados fora de data, lugar e contexto.

Os exemplos são muitos. É falso que o artigo 14 prevê a intervenção militar ou federal; que o aplicativo do STF não permite denúncias contra o PT; que o STF e o TSE criaram leis para cassar os cristãos eleitos; que a Justiça determinou a liquidação do estoque da Daslu; que o Tribunal de Estrasburgo determinou a anulação do casamento homossexual; que Alexandre de Moraes aparece em foto jantando com José Dirceu; e que o Júri concluiu que Maria da Penha foi morta por um assaltante, não pelo marido.

Cada uma dessas frases refere-se a elementos verificáveis. Há, inclusive, todo um trabalho de recuperação da verdade informativa realizado com esmero e atenção.

A polêmica entre impedimento e golpe é de outra natureza: faz parte do ­domínio da interpretação. O tema não é novo. Os historiadores discutem se “renascimento” é um conceito adequado para se caracterizar determinado momento histórico da Europa Ocidental. Alguns dizem não existir Renascimento (com maiúscula), mas apenas um conjunto de transformações específicas à vida cultural e estética italiana. Outros discordam: há uma história do Renascimento, e ela não se limita à Itália.

O tema torna-se então uma controvérsia. O ano de 1868 é visto, no Japão, como revolução Meiji ou restauração. O aspecto revolucionário sublinha o advento da modernidade e da industrialização, a ruptura com a ordem tradicional dos samurais. É uma data emblemática, pois a modernização do Japão se faz antes de alguns países da Europa Ocidental e ­pari passu com os Estados Unidos.

Reputa-se como fake news toda versão antagônica produzida por um suposto inimigo

Os conservadores, no entanto, ao construir um fio imaginário da história que liga a figura do imperador desde a corte Heian (século VII) às transformações do fim do século XIX preferem o termo restauração. Em princípio, o imperador, sufocado pelo poder dos clãs samurais, emergiria para unir o povo japonês em torno da aspiração à coesão nacional.

Neste caso, as duas perspectivas se aproximam, ainda que enfatizem dimensões distintas. Revolução ou restauração são interpretações, não fake news. A “verdade histórica” é distinta da “verdade informativa”.

O debate tupiniquim situa-se nesse contexto. As forças de esquerda privilegiam a ruptura democrática incentivada pela elite econômica e política – não nos esqueçamos de que os conglomerados midiáticos apoiaram a “nova ordem dos fatos”, assim como o fizeram durante a ditadura.

Como as razões para o impedimento eram frágeis e inconsistentes, foi preciso maquiá-las e dar-lhes uma roupagem jurídica capaz de tornar o invólucro palatável. A partir de um falso motivo ético-político, rompia-se com a ordem democrática. Essa ambiguidade se reflete na sentença proferida: Dilma Rousseff é cassada como presidente, mas tem garantidos seus direitos políticos.

Os conservadores minimizam o motivo da destituição. Montado o argumento jurídico, o que importaria seria o procedimento processual, sem desvios das regras institucionais consagradas.

Neste caso, a causa permanecia oculta, funcionando apenas como gatilho de uma ruptura ordenada, na qual as instituições democráticas estariam preservadas. Oculta-se dessa forma o clima de lavajatismo e intolerância.

Mas seria tudo isso fake news? A disputa sobre o significado de impedimento é, na verdade, uma controvérsia de versões, que nada tem a ver com a transmissão das informações. Ela não pode ser conferida nos sites que zelam pela veracidade das notícias.

Embora fundada na análise dos fatos, a verdade histórica não pode ser checada como algo que afirma ou desmente aquilo que se diz. A interpretação é sua natureza. Não existe um Site (com maiúscula) no qual a verdade final possa ser consagrada – a não ser em casos de negacionismos.

Os historiadores vivem em um universo de disputa de versões e, à medida que se conhece melhor a realidade, constrói-se um consenso compartilhado. O universo das notícias, em sua celeridade agora digital, muitas vezes se crê portador de uma sabedoria fugaz, capaz de definir a ordem do mundo segundo ­suas virtudes midiáticas. •


*Renato Ortiz é professor do Departamento de Sociologia da Unicamp.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1246 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Disfarces em disputa”

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