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“Devo ter algo de patético”

Queridinho da Dior e dos cineastas, Harris Dickinson protagoniza três filmes exibidos este ano no cinema

Tragédia. A atriz sul-africana Charlbi Dean, sua colega de elenco no premiado Triângulo da Tristeza, morreu aos 32 anos, de uma doença inesperada - Imagem: Eye Neon/Bac Films
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Quando Harris Dickinson foi escalado para o papel de um personagem chamado Carl, ele recebeu a informação de que interpretaria um mecânico de automóveis descoberto na rua para ser modelo e enviado para desfiles em Paris. Dickinson, um ator londrino de 26 anos, sabe um pouco sobre o mundo da moda – é o favorito dos estilistas da Dior –, mas menos sobre conserto de carros. “Quando faço um personagem, realmente quero entrar no papel”, diz. “Então, estive pesquisando muito sobre carros e sobre como é ser um mecânico.”

Preciso interromper: não há absolutamente nada em Triângulo da ­Tristeza, novo filme do sueco Ruben Östlund, ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano, sobre o personagem principal, Carl, ser um mecânico. “Sim, me lembro de estar no set e de tudo isso ser removido da história”, diz. “Me senti um pouco idiota.” Por ter perdido seu tempo? “Olhe, estou trabalhando numa oficina aos sábados”, brinca.

Em outra cena do roteiro de ­Triângulo da Tristeza, Carl aparece em um ­casting para uma campanha de moda segurando um exemplar de Ulysses, de James Joyce. Östlund sugeriu que o ator se aprofundasse no texto. “Então eu li, e é um trabalho árduo”, diz Dickinson, ciente de que nós dois sabemos, com inevitabilidade cômica, para onde a história caminha. “É muita coisa para ler, aquele livro, e eu estava procurando estudos sobre ele. Então chegamos no dia, e Ruben disse: ‘Não, não use o livro’. E eu disse: ‘Tudo bem, sim, boa ideia!’, cerrando minha mandíbula. ‘Porra!’”

Antes de escolhê-lo, o sueco Ruben Östlund, diretor de Triângulo da Tristeza, testou outros 12o atores

Östlund – cujo filme anterior, a sátira sobre o mundo da arte The Square: a Arte da Discórdia (2017) também ganhou Cannes – é conhecido como um cineasta exigente: ele testou 120 atores para o papel de Carl antes de concedê-lo a ­Dickinson. A média de takes por cena em Triângulo da Tristeza foi de 23.

“Adorei cada minuto. Honestamente, foi difícil, mas acho que fazer filmes deve ser assim: duro e implacável. Às vezes, um ator passa muito tempo sentado. Fazem um close na mão e então você volta para o trailer. E é um pouco chato. Há dias em que você se sente bobo. Mas, num filme como o de Ruben, você é usado o tempo todo e se esforça para ser ótimo em todos os sentidos. No fim do dia, você se sente despedaçado, mas parece que vale a pena.”

Dickinson foi descoberto no filme ­Ratos de Praia (2017), de Eliza ­Hittman, um grande vencedor de Sundance, no qual interpretou um adolescente do Brooklyn lutando com a masculinidade e a própria sexualidade. Viriam depois performances atraentes nos sucessos Malévola: Dona do Mal (2019) com Angelina Jolie, e O Homem do Rei (2021), ao lado de Ralph Fiennes. Este ano, pode ser visto nos cinemas na aventura Veja Como Eles Correm e na adaptação do best seller de Delia Owens Um Lugar Bem Longe Daqui. É, no entanto, o “maluco” (palavra dele) Triângulo da Tristeza que mostra melhor como é hábil e adaptável.

Versões. Dickinson em sua estreia no cinema, com Ratos de Praia, e em dois filmes lançados este ano: Veja Como Eles Correm e Um Lugar Bem Longe Daqui – Imagem: Redes sociais

O filme de Östlund, que abriu a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, começa com uma crítica perspicaz da indústria da moda, mas rapidamente passa para um iate de luxo e mira num alvo maior: os super-ricos. Carl e a namorada, uma influenciadora chamada Yaya (Charlbi Dean), são os elos a ligar as pontas desse conto moral que acaba com um grupo de bilionários presos em uma ilha deserta, lutando pela sobrevivência. Triângulo da Tristeza consegue ser ao mesmo tempo bobo e profundo, escatológico e provocante. Ou, simplesmente, maluco.

Carl é o personagem mais relacionável, até simpático. Ele não vem de um mundo privilegiado e é o que chega mais perto de insinuar que seus excessos podem ser repulsivos. Mas Östlund não poupa nenhum personagem de seu desprezo abrasador. E o que o fez, afinal de contas, escolher Dickinson?

“Devo ter algo de patético que ele, provavelmente, viu em mim e achou que seria capaz de trazer à tona em Carl”, diz ­Dickinson com um sorriso. “Apenas alguém que é imoral e instável.” E então fica sério: “Peço a Deus que eu não seja Carl”.

Em uma ilha deserta, pelo menos, deve haver uma distinção clara entre o personagem e o ator. Carl é basicamente desesperado, enquanto Dickinson passou a adolescência na Marinha Real. “Cresci acampando, fazendo fogueiras, então houve momentos no set em que meu ego estava lutando, cara. Eu pensava: ‘Sou uma merda. Sou muito patético. Tudo que eu queria fazer era ajudar de alguma maneira, mas não conseguia!”

“Às vezes, um ator passa muito tempo sentado. Fazem um close na mão e então você volta para o trailer”, descreve ele

Triângulo da Tristeza recebeu uma ovação de oito minutos em Cannes. De tão prolongada, deixou Dickinson envergonhado, sem saber para onde olhar. Mas houve um final trágico para o filme. Em agosto, sua colega de elenco, a atriz sul-africana Charlbi Dean morreu, aos 32 anos, de uma doença inesperada.

“Estivemos na lama juntos durante a coisa toda”, diz. “Então ouvir essa notícia foi chocante e terrível. Levei um tempo para compreender. Todo mundo no filme está realmente arrasado, mas sinto que essa performance foi algo feito para que nos lembremos dela. É algo de que sua família deve se orgulhar.”

O caminho de Dickinson até aqui o torna quase um estranho na classe teatral britânica: sem escola pública, sem ­Oxbridge, sem escola de teatro. Seu pai era assistente social, sua mãe, cabeleireira, e ele tem três irmãos mais velhos. Ele levava a sério os fuzileiros navais, esteve nos cadetes durante quatro anos e estava pronto para subir nos escalões aos 17. Sua decisão de não se inscrever foi uma bifurcação na estrada, na qual ele ainda pensa: 2003, seu curta-metragem de estreia como diretor, é sobre o último dia de um soldado adolescente em casa antes da missão.

Não ficou imediatamente óbvio que Dickinson tomou a decisão certa ao escolher a atuação no lugar das Forças Armadas. Ele frequentou um clube de artes cênicas dos 11 aos 17 anos e conseguiu papel em uma peça aos 18, o que o levou a um agente. Então fez um curso de cinema na faculdade, mas não gostou das tarefas e se desentendeu com um dos professores. Isso o convenceu a não se inscrever na escola de teatro. Em vez disso, enquanto continuava progredindo em papéis de ator, trabalhou em turnos num bar, coletou lixo e foi assistente de vendas numa loja de roupas

“Lembro que estava no porão dobrando roupas e recebi uma ligação de um número desconhecido”, diz ele. “E um número desconhecido sempre significava que era meu agente. Então, toda vez, eu pensava: ‘É isso! Estou fora daqui!’ E eu subia a escada correndo, ouvia o correio de voz e eles diziam: ‘Você não conseguiu (o papel).”

Convites. “Sou trabalhador, mas também sou bom em relaxar”, diz o jovem ator, requisitado ainda como modelo – Imagem: Christophe Simon/AFP

Dickinson passou a trabalhar em um hotel no leste de Londres, economizando dinheiro para financiar viagens a Los Angeles, para um teste para uma temporada piloto – que é quando os estúdios gravam amostras de novos programas de tevê que podem ou não entrar em produção. “Peguei um piloto e disse ao hotel: ‘Desculpe, pessoal, sou eu! Estou indo para Hollywood!”, diz, rindo. “Então, dois meses depois, tive de voltar e pedir o emprego de volta.”

O papel em Ratos de Praia, que exigia que Dickinson tivesse um sotaque do Brooklyn, embora ele nunca tivesse pisado em Nova York, foi conseguido com um teste gravado em seu quarto de criança, na casa de sua mãe. “É uma espécie de milagre”, diz. “Mas havia algo no roteiro com que eu me identificava: a área suburbana e os garotos daquele mundo que eu sentia que conhecia um pouco. Meio reprimido, muita agressividade. Vi algo nele que eu acho que Eliza (Hittman, a diretora) viu em mim, talvez.”

Não há muito diálogo em Ratos de Praia, mas a câmera permanece em Dickinson, confiando que sua intensidade silenciosa traria à tona as disputas internas e a confusão ­sexual que seu personagem, Frankie, vivencia. O fato de ele estar seminu durante boa parte do filme pode, para alguns, ter acrescentado uma camada de interesse.

Dickinson, claramente, pode confiar em sua aparência imponente – ele tem 1,80 metro, olhos azuis-claros e lábios macios –, mas sua curta carreira é impressionante pela variedade de papéis assumidos. Há, além dos filmes já citados, The King’s Man: a Origem (2021), de Matthew Vaughn, The Souvenir Part II, de Joanna Hogg, e County Lines (2019), um drama indie britânico sobre traficantes de drogas adolescentes.

Dickinson descobriu que não precisa disputar tanto os papéis hoje em dia. E essa descoberta combina com ele. “Sou trabalhador, mas também sou bom em relaxar”, diz. “Sou bom em tirar folgas.” Nos últimos cinco anos, ele começou a surfar, fazendo viagens regulares à Cornualha e também para os Estados Unidos e as Filipinas.

Há também sempre algo para fazer em sua casa e no jardim, que ele divide com sua namorada, a musicista Rose Gray. E eles têm um gato de alta manutenção, um britânico chamado Misty Blue, de pelo alvo e curto e olhar penetrante. “Então, ele é alguém em quem temos de pensar”, diz ­Dickinson, orgulhosamente puxando uma foto em seu telefone. “Ele dá muito trabalho – é um príncipe, mas vale a pena.”

O próximo passo para Dickinson é uma viagem à Louisiana para filmar The Iron Claw, ao lado de Zach Efron e ­Jeremy ­Allen White, e The Bear, sobre três irmãos de uma dinastia de lutadores da vida real, os Von Erichs. Ele também escreveu um longa-metragem, que está em desenvolvimento e que planeja dirigir.

Além disso, Dickinson gostaria de ­desempenhar um papel que o obrigasse a aprender habilidades úteis para a vida. Ele já fez bastante luta com espadas e passeios a cavalo. Acha que o que realmente precisa é de ajuda com assuntos mais práticos. Pode ser algo como a pesquisa que ele fez para ser um mecânico de automóveis, mas que, pelo menos, apareça na tela.

“Gostaria de aprender a fazer a minha própria contabilidade, ou algo assim”, diz o ator. “Seria uma boa habilidade. Talvez haja um filme de Aaron Sorkin por aí sobre um contador.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves. 

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1232 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ““Devo ter algo de patético” “

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