Cultura

“Coisa de preto”

A felicidade de ter canções de Gilberto Gil buzinando na nossa cabeça

Capa do disco Raça Humana (1984), de Gilberto Gil, faz alusão ao 'Big Brother' de Orwell
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Toda vez que Gilberto Passos Gil Moreira, ainda com um pé na administração de empresas, aparecia na tela daquela televisão valvulada e sem cor, no canto da sala de uma casa em Santo Amaro da Purificação, Dona Canô, uma baiana cem por cento, enxugava as mãos no avental e chamava:

 – Caetano, vem correndo ver aquele preto que você gosta!

O jovem Caetano, ainda caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, parava encantado diante da tela e ficava admirando aquele preto de rosto redondo dedilhando o violão, cantando suas primeiras canções, ainda meio bossa nova: Serenata de Teleco-Teco, Maria Tristeza, Vontade de Amar e Meu luar, minhas canções.

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Era agosto de 1964, o golpe militar ainda estava fresco e o marechal Castelo Branco aquecendo a cadeira de ditador, quando Caetano conheceu o preto da televisão que ele gostava tanto.

Com a irmã Maria Bethânia, Tom Zé, Alcyvando Luz, Antônio Renato, Djalma Corrêa e Fernando Lona, todos doces bárbaros, montou um espetáculo para inaugurar o Teatro Vila Velha, em Salvador: Nós, por exemplo.

Gilberto Passos Gil Moreira virou simplesmente Gilberto Gil e nunca deixou de ser aquele preto que aparecia na televisão e encantava Caetano e a todos nós.

Foi ele que um dia cantou para o Brasil uma canção chamada Sarará Miolo:

Sara, sara, sara cura
Dessa doença de branco
Sara, sara, sara cura
Dessa doença de branco
De querer cabelo liso
Já tendo cabelo louro
Cabelo duro é preciso
Que é para ser você, crioulo

Foi ele que fez o povo dançar pelas ruas de Salvador ao som do Ilê-Ayê.

Que bloco é esse? Eu quero saber/

É o mundo negro que viemos mostrar pra você/Que bloco é esse?/ Eu quero saber/É o mundo negro que viemos mostrar pra você/Somo crioulo doido somo bem legal/Temos cabelo duro somo black power/Somo crioulo doido somo bem legal/Temos cabelo duro somo black power.

Foi aquele mesmo preto que um dia, ao lado de Chico Buarque, cantou as mãos da limpeza:

O branco inventou que o negro
Quando não suja na entrada
Vai sujar na saída
Imagina só
Vai sujar na saída
Imagina só
Que mentira danada
Na verdade a mão escrava/Passava a vida limpando
O que o branco sujava
Imagina só
O que o branco sujava
Imagina só
O que o negro penava/Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza
Negra é a vida consumida ao pé do fogão
Negra é a mão
Nos preparando a mesa
Limpando as manchas do mundo com água e sabão
Negra é a mão
De imaculada nobreza

Foi aquele preto que, com sua guitarra em punho, definiu a raça humana:

A raça humana é uma semana do trabalho de Deus
A raça humana é a ferida acesa
Uma beleza, uma podridão
O fogo eterno e a morte
A morte e a ressurreição
A raça humana é o cristal de lágrimas da lavra da solidão
Da mina cujo o mapa trás na palma da mão
A raça humana risca, rabisca, pinta, a tinta à lápis, carvão ou giz

Foi aquele preto que um dia apareceu na tela da televisão lá em Santo Amaro da Purificação, agora em cores, para cantar a oração pela sua libertação da África do Sul.

Se o rei Zulu já não pode andar nu
Salve a batina do bispo Tutu
Ó, Deus do céu da África do Sul
Do céu azul da África do Sul
Tornai vermelho todo sangue azul
Já que vermelho tem sido todo sangue derramado
Todo corpo, todo irmão, chicoteado
Senhor da selva africana, irmã da selva americana
Nossa selva brasileira de Tupã

Foi aquele preto da televisão que, num dia de verão, fez Paris inteira cantar: Touche paz à mon pote, cuja letra, em bom português, diz que o Ser que fez Jean-Paul Sartre pensar é o mesmo que fez Yannick Noah jogar.

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