Quantas vezes um debate nas redes sociais pode atravessar superficialmente discussões da realidade brasileira? O que comumente era “textão” pode ser um simples tuíte hoje em dia, mas o antropólogo, babalorixá e doutor em antropologia Pai Rodney de Oxóssi acredita que, em respeito à cultura e à memória de um povo que resiste até hoje, é necessário ir além.
Colunista de CartaCapital, Pai Rodney lançará em breve o livro Apropriação Cultural como o sétimo título da Coleção Feminismos Plurais, coordenada pela filosofa Djamila Ribeiro. A intenção é sair do óbvio: “O livro tem um objetivo: ele pretende aprofundar o debate a respeito da apropriação cultural porque ele ficou muito naquilo do pode ou não pode”, diz o estudioso.
Para explicar mais sobre as discussões que permeiam o assunto, Pai Rodney conversou com CartaCapital diretamente de Nova York, onde aconteceu a cerimônia de premiação das 100 pessoas afro-descendentes mais influentes do mundo abaixo dos 40 anos, que tem o babalorixá como integrante.
“Brancos x turbantes”?
“Apropriação cultural não é sobre branco não poder usar turbante, cantar samba ou jogar capoeira. É sobre uma estrutura de poder. Há um poder desde a colonização que delega aos dominantes definir quem é inferior”, argumenta Pai Rodney, que cita na obra exemplos recentes sobre como a temática tem sido simplificada.
Entre eles, está o caso do texto que viralizou na internet porque uma garota com câncer foi supostamente questionada sobre o uso do turbante. Para o antropólogo, casos isolados são utilizados para esvaziar o debate sobre o que realmente importa: a violência sistêmica contra um povo e contra sua cultura.
“A apropriação não ocorre apenas quando uma pessoa de um grupo social dominante ou o próprio grupo utiliza ou adota hábitos, vestuários, objetos de outra cultura. Essa definição dá margem para que apropriação cultural seja interpretada mais como um processo de aculturação, mas o conceito vai além.”
Um dos casos mais debatidos de racismo e apropriação dos últimos tempos foi o do “bolinho de Jesus”, o nome dado por setores evangélicos ao acarajé. O poder legislativo baiano teve que intervir e proibir que o tradicional bolinho feito pelas baianas, considerado patrimônio cultural imaterial brasileiro, pudesse ter outro nome ao ser vendido.
“O acarajé é um símbolo que vai para além dos terreiros e se tornou um patrimônio nacional, mas que identifica e dá sentido para todas as produções de resistências do povo negro no País. Não tem a ver com essa estrutura de consumo e de estrutura capitalista que as igrejas neopentecostais se alinham de forma muito profunda.”, diz Pai Rodney.
O autor explica que esse não é o único ataque às tradições de terreiros e de religiões de matrizes africanas por parte de setores fundamentalistas cristãos.
“O crescimento da intolerância religiosa já está sendo constatado pelos casos gravíssimos de bandidos que estão fechando e invadindo terreiros. Hoje você têm crianças que rejeitam os doces de Cosme e Damião porque são ‘doces do diabo’. Esse diabo é associado à cultura negra.”
Como a questão sempre volta no “pode ou não pode”, Rodney diz que, em alguns casos, é até mesmo obrigatório que pessoas brancas usem turbantes, como em ritos nos terreiros de candomblé, quando a vestimenta tem sentido e significado que conversa com um passado de resistência negra aos períodos de apagamento da cultura africana.
“O problema é como a indústria da moda se apropria desse turbante, bota no editorial das grandes revistas, bota nos shoppings, todo mundo usa sem saber o significado e o sentido, e sem saber que, por conta daquilo, muitas pessoas são apedrejadas. No caso brasileiro, existe algo com ‘nosso’. A feijoada é ‘nossa’, o samba é ‘nosso’, e na verdade esse ‘nosso’ tem uma origem. É preciso respeitar a história do povo que preservou tudo isso.”, analisa o babalorixá.
No meio do caminho, elementos da cultura afrobrasileira esbarram na “branquitude”, definida por Pai Rodney como a ideia de não contestação do próprio grupo social. As raízes colonizadoras são explícitas: “São como sinhozinhos e sinhazinhas que acreditam que a riqueza cultural é patrimônio de todos, da qual se pode dispor sem critérios, sem limites e sem respeito.”
Em tempos de exaltação de bandeirantes e senhores escravistas por parte do vice-presidente da República, há quem julgue o discurso como uma das formas do “politicamente correto”.
Para o autor do livro, porém, a luta dos povos indígenas e escravizados pela resistência de suas formas de expressão, que perdurou por séculos, não devem ser brecadas pelo avanço conservador – afinal, a negação é e sempre foi estratégia deles. É necessário o contraponto: “Cada indivíduo precisa assumir a sua responsabilidade para não produzir opressões”, crava Pai Rodney.
O livro está em pré-venda pela Polén Livros e será lançado ainda em outubro. Como toda a coleção, ele custa R$ 19,90.
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