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“A música se sente na pele”

Thierry Fischer, regente titular da Osesp, diz que, se pudesse escolher, não apresentaria mais concertos digitais

Fischer estreou em 2020 e ficou meses sem poder retornar - Imagem: Laura Manfredin
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Escolhido, em 2019, como o novo diretor musical e regente titular da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), o suíço Thierry ­Fischer tinha uma intensa agenda de viagens para São Paulo em 2020. Mas, logo depois do concerto de abertura da temporada daquele ano, realizado em março, na Sala São Paulo, veio o lockdown. Fischer voltou várias vezes desde então, mas é só agora que uma temporada como aquela prevista para 2020 parece de novo possível.

Na semana passada, o maestro chegou à cidade, depois de uma semana de férias em Minas Gerais, para reger três concertos e participar da divulgação da Temporada de 2023, intitulada Sem Fronteiras. Após dois anos de apresentações mais curtas, para evitar a aglomeração no intervalo, e de temporadas readequadas às limitações sanitárias, que dificultaram, em certo período, a presença de músicos estrangeiros, por exemplo, a Osesp volta ambiciosa.

Se, em 2020, muito se falou sobre o quanto as transmissões digitais democratizavam o acesso e até sobre a possibilidade de concertos enxutos atraírem um novo público, passados os impedimentos, as supostas vantagens desses formatos foram esmaecendo. “A música é para ser dividida com outras pessoas numa mesma sala”, diz Fischer, em entrevista concedida na quinta-feira 22, logo após o ensaio geral, aberto para o público, do concerto que incluía Strauss e Shostakovitch.

Longe da imagem estereotipada do maestro intempestivo e autoritário, Fischer tem uma presença suave no palco. Mesmo quando pede para os músicos voltarem para um trecho da partitura, se apressa em dizer: “Sem problemas, sem problemas”.

Quando algo não soa exatamente como esperava, ou ele cantarola – pá-pá, tá-rá-rá-rá – ou descreve o som, que pode lembrar um pequeno pássaro ou o farfalhar dos pés sobre o gramado. Enquanto rege, às vezes são os dois joelhos que dobram simetricamente em busca de certo resultado; às vezes, são pequeninos saltos, que fazem o ritmo acelerar; às vezes, ainda, é a mão esquerda mexendo-se energicamente em direção aos violinos. E, de repente, aquela linha da partitura se faz mais vivaz.

Ao fim do ensaio aberto, em vez de ir para o camarim, o regente ficou no hall da Sala São Paulo, rodeado por crianças de uma escola. Depois de tirar muitas fotos com elas, conversou com CartaCapital.

CartaCapital: O senhor estava rodeado por crianças. O senhor gosta desse contato?

Thierry Fisher: Elas são o futuro. Temos que dar o nosso tempo para elas. Ganhei minha semana vendo essas crianças aqui. É claro que é uma forma de dizer, ainda tenho três concertos para reger (risos).

CC: O que há de eterno na música clássica? Por que, mesmo na era das músicas do TikTok, ela consegue deter a atenção das crianças como deteve no ensaio?

TF: Por que as crianças gostam de dinossauros? Porque é algo gigante, talvez. Não tenho uma resposta para esta pergunta. O que eu sei é que tudo começa na educação e que a arte pode influenciar nas pessoas que seremos, nos adultos que eles serão.

“A arte pode influenciar nas pessoas que somos”, afirma o maestro suíço

CC: Conversamos no primeiro semestre de 2021, quando o senhor estava em sua casa, na Suíça, prestes a retomar os concertos, e houve então outra onda de fechamentos. O que fica, de frustração e de aprendizado, desse período?

TF: Não tenho frustrações. No meio daquilo tudo, seguimos podendo tocar música, ainda que de outra maneira. Me senti triste, sim, mas não frustrado. Nem poderia, né? Com pessoas passando fome no mundo, eu me sentir frustrado por não conseguir reger ao vivo? O que eu acho, sobretudo, é que, depois da pandemia, é como se estivéssemos refundando algumas manifestações artísticas. Sinto que o sentimento de se ouvir música coletivamente ficou mais forte, mais poderoso. A arte é também sobre nos sentirmos frágeis e sobre tentarmos criar beleza.

CC: A pandemia transformou o consumo de determinadas formas de arte e entretenimento. No caso do cinema, por exemplo, houve uma migração de parte do público para o streaming. Os concertos digitais vieram para ficar?

TF: Se você me perguntar se quero reger concertos digitais, digo não, não quero. Não acredito nessa ideia de colocarmos uma orquestra dentro de uma tela, de uma caixa. A música é para ser dividida com outras pessoas numa mesma sala. A música é sentida por meio da vibração do corpo também. Mas, se você me perguntar se continuarei a fazer, minha resposta é: claro que sim. A música digital significa, para mim, informação. A música na sala de concerto é uma experiência.

CC: Na pandemia, o senhor regeu de máscara e até mesmo com a orquestra reduzida, por causa das regras de distanciamento. Teve também de fazer concertos, para transmissão online, com a plateia vazia. É possível reger da mesma forma, sem o público, ou algo se altera?

TF: Naquele momento, eu achava que sim, que era possível. Hoje, percebo que não. Nós fazemos o que fazemos para as pessoas, e só sentimos a presença do público na sala de concerto. A presença e a música se sentem na nossa pele.

CC: A programação de 2023 inclui o Ciclo Rachmaninov, que celebra os 150 anos do compositor, com nove obras dele. Quais são os sentidos de se apresentar um romântico russo em 2022?

TF: Acho que o planeta precisa, neste momento, de algumas formas de conforto. As obras de Rachmaninov trazem esse conforto. Uma orquestra não é um museu, que tem algumas peças que estão sempre ali, à disposição do público. Então precisamos ter a sensibilidade de tentar oferecer ao público aquilo que supomos ter sentido em cada momento. E é claro que, no caso de Rachmaninov, temos também a efeméride.

CC: E por que Sibelius, também programado para a temporada de 2023?

TF: Sibelius é um compositor obscuro. A forma como ele escreve não é nada óbvia. É, ao contrário, misteriosa, e o que eu quero é desvendar esse mistério com os músicos da orquestra. Quando um trabalho assim dá certo, é como uma flor se abrindo. Eu falei em conforto, mas, na arte, o conforto pode ser obtido também por meio do confronto, no sentido de ser algo não esperado ou que nos impõe desafios, nos inspira. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1228 DE CARTACAPITAL, EM 5 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ““A música se sente na pele””

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