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A mulher por trás do ícone

A presença de Madonna em Copacabana é acompanhada do lançamento da mais completa e complexa biografia da rainha do pop

A cantora encerra no Brasil a turnê dos 40 anos de carreira – Imagem: Redes sociais
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Quando chegou em Nova York, vinda de ­Michigan, aos 19 anos, em 1978, Madonna Louise Ciccone tinha uma pequena mala, um casaco de inverno e 35 dólares no bolso. Em entrevista ao locutor Howard Stern, anos depois, ela admitiria estar assustada: “A enorme escala de Nova York me deixou sem fôlego. Eu estava preparada para sobreviver… Mas também estava totalmente apavorada e enojada com o cheiro de mijo e vômito”.

Nos anos seguintes, Madonna experimentaria a pobreza extrema, vivendo em uma série de apartamentos infestados de baratas, onde viciados ocupavam os corredores. Muitas vezes passou fome. No entanto, Whitley Setrakian, que foi colega de quarto dela na ­Universidade de Michigan, onde estudaram dança, diz: “Nunca a vi tão feliz e tão segura”. Ela lembra de ter ouvido Madonna dizer: “Todos os dias que estou aqui nesta cidade não consigo parar de pensar em todos os dias que não estive aqui. Sinto que estou numa corrida em que todos tiveram uma vantagem inicial”.

A autoconfiança, a vontade ferrenha e a recusa em deixar que as circunstâncias a abalassem ressoam na enorme biografia Madonna: Uma Vida ­Rebelde, de Mary Gabriel. Muitos livros documentaram a vida da rainha do pop mundial, mas poucos em uma escala assim gigantesca.

Ao longo de 800 páginas, a autora, imbuída da missão de compreender a mulher por trás do ícone global – a Nossa Senhora encarnada –, não deixa nada passar despercebido. Não há música, videoclipe, filme, aparição na tevê, amizade ou ligação romântica que fique sem análise.

Mary, ex-jornalista da agência ­Reuters, escreveu também Nineth ­Street Women (Mulheres da Rua 9), livro de 2018 sobre cinco artistas esquecidas, que apresenta um painel detalhado da criatividade na Manhattan do pós-Guerra. Em Madonna, ela nos oferece um retrato igualmente evocativo de Nova York no fim dos anos 1970 e início dos 1980, uma cidade suja e negligenciada, cheia de aventureiros e vagabundos, e um viveiro de arte e hedonismo.

Madonna: Uma Vida Rebelde Mary Gabriel. Tradução: Patrícia Azeredo, Luana Balthazar e Alessandra Bonrruquer. Editora Record (854 págs., 119,90 reais) – Compre na Amazon

A narrativa é salpicada por digressões contextuais sobre a história e a política da época: os protestos anti-Vietnã, o movimento gay de Stonewall, a pílula anticoncepcional, a Emenda da Igualdade de Direitos, o caso Roe x Wade, envolvendo a questão do aborto, e a crise da Aids.

Os que insistem que Madonna estava interessada apenas na fama poderão ajustar essa visão quando conhecerem sua campanha para educar o mundo sobre o HIV e a Aids, num momento em que seus contemporâneos, para não falar dos políticos, estavam calados ou ruidosamente enojados.

Um ano antes de o governo dos Estados Unidos começar a distribuir panfletos sobre a Aids, Madonna – que perdeu muitos amigos devido à doença, incluindo o artista plástico Keith Haring – inseria panfletos sobre sexo seguro nos programas de seus shows, arriscando sua reputação e sua carreira. Outras percepções a respeito de Madonna – como a de que ela “roubou” suas ideias das culturas gay e negra ou de que era preciso um homem no estúdio para fazê-la cantar bem – são habilmente descartadas pela autora.

A escrita de Mary Gabriel é simples e direta. Ela tem a abordagem de uma historiadora cultural, não de uma fã, e parece deliciar-se com detalhes como o fato de Madonna ter sido demitida do emprego no Russian Tea Room, em ­Nova York, por usar meia arrastão, ou enfiar a língua no ouvido de Al Pacino depois de conhecê-lo como um jovem arrogante de 20 anos.

A figura que surge do calhamaço é inevitavelmente contraditória: séria, engraçada, generosa, imprudente, trabalhadora, inquieta, cega, controladora, teimosa. É uma história não apenas de discos de sucesso, reinvenções e polêmicas que renderam manchetes, mas de uma jovem da classe trabalhadora, traumatizada pela morte prematura da mãe, muito religiosa, que se tornou um colosso cultural e uma pedra no sapato da direita conservadora e da Igreja Católica.

A servir de base à narrativa estão os sistemas patriarcais desafiados pela artista e sua crença inabalável no direito à autoexpressão

A servir de base à narrativa estão os sistemas patriarcais repressivos que Madonna desafiou incansavelmente e sua crença inabalável no direito à autoexpressão.

Juntamente com a música, essa expressão encontrou um canal no cinema, com resultados decididamente variados. Não pode haver melhor imagem da obstinação de Madonna do que sua carreira de atriz, onde os fracassos gritantes – Quem É Essa Garota? (1987), Corpo em Evidência (1992), Sobrou pra Você (2000), Destino Insólito (2002) – superam em muito os sucessos, seja de crítica, seja de bilheteria, casos de Procura-se Susan Desesperadamente (1985) e Evita (1996). Mesmo assim, ela seguiu em frente, determinada a provar que os que a criticavam estavam errados.

Parte da habilidade de Mary Gabriel é ela ter conseguido transformar essa vida complexa, extensa e agitada em uma escrita que raramente vacila e que consegue transmitir o significado mais amplo de seu tema sem cair na hagiografia. Passamos a compreender ­Madonna como pessoa, mas também como um conceito: uma mulher que, durante uma geração, encarnou a libertação feminina – artística, sexual e financeira.

“Logo que as filhas da segunda onda do feminismo, que aprenderam que eram iguais a seus irmãos, começaram a entender que não era bem assim, elas descobriram Madonna”, escreve a autora. “Seu visual ofereceu a elas uma maneira rebelde de expressar sua insatisfação fervilhante e o desafio emergente… A mensagem não era ‘Sou uma mulher’ dos anos 1970, mas ‘Eu sou livre’ dos 1980. Mas qual era a cara da liberdade? Era Madonna.” •


Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A mulher por trás do ícone’

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