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Para não se repetir

A Lei de Anistia não é ou não deveria ser sinônimo de esquecimento

Os agentes da repressão não foram punidos, mas têm havido reparações pecuniárias e históricas às vítimas do regime – Imagem: Arquivo Nacional
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Um debate tem sido recorrente no Brasil: a lei de anistia política de 1979 foi mesmo uma lei que garantiu a impunidade? Para que tenhamos uma reconciliação nacional e uma pacificação, é imprescindível “passar uma borracha” no passado, seja ele de 60 anos ou de 12 meses atrás?

Para responder a estas perguntas, vale examinar o que significa esse instrumento jurídico, a anistia política. Anistias, de maneira geral, significam esquecimento. Assim, uma anistia fiscal, por exemplo, significa que o débito de determinado contribuinte é apagado, esquecido, de modo que o indivíduo não precisa mais pagar aquela dívida fiscal. Como se ela nunca tivesse acontecido. Entretanto, quando se trata de anistias políticas, existem duas possibilidades: as anistias de esquecimento e aquelas de memória.

As anistias políticas de esquecimento significam que um país “passou uma borracha” nos fatos ocorridos no período anistiado. Tudo que aconteceu foi esquecido. Essas leis de anistia são chamadas de leis de autoanistia. Em outras palavras, considera-se que aqueles fatos não ocorreram. Alguns países do Cone Sul que também passaram por um período de ditadura fizeram leis de autoanistia, ou seja, efetivamente apagaram os fatos ocorridos e por isso se afirma que naqueles casos ocorreu uma anistia de esquecimento.

Criou-se assim uma sensação de que todos os países latino-americanos que haviam passado por regimes autoritários tinham a mesma política de anistia como esquecimento, sem que, contudo, houvesse um exame mais acurado sobre a legislação brasileira.

O período ditatorial terminou, mas o ambiente político permaneceu com receio de que os militares pudessem retomar o poder a qualquer momento, caso não houvesse controle daquela abertura lenta, gradual e segura. Dessa forma, quando da promulgação da Constituição de 1988, embora a censura não mais fosse exercida e o ambiente nacional fosse de festa democrática, prevalecia uma espécie de acordo tácito de não debater a ditadura, como se ela tivesse sido mesmo esquecida ou nem tivesse ocorrido. Muitas eram as autoridades que até mesmo declaravam que não tinha acontecido nenhuma ditadura no Brasil. Alguns o fazem até a presente data.

Por todo esse contexto, tem sido construída uma tese de que o Brasil teve um período um pouco mais autoritário que o desejável, mas que tinha sido um mal menor, ou um mal necessário, e que houve necessidade de um pacto nacional para apagar os fatos horríveis e cruéis desse período, como as torturas, por exemplo.

Observe-se, por exemplo, a lógica contida numa parte de uma das respostas na entrevista do general Sérgio Etchegoyen concedida no início de novembro de 2020 ao portal de notícias UOL, comentando o governo da petista Dilma Rousseff: “Eles isolaram os militares, desrespeitaram-nos, encenaram uma Comissão da Verdade claramente vingativa, afrontaram a lei para usurpar competências claras dos comandantes”. Por qual razão um general afirma que uma Comissão de Estado, criada por lei, foi uma encenação? Exatamente porque dentro da lógica do esquecimento não caberia qualquer Comissão da Verdade. Verdade do que, se nada aconteceu? Se houve esquecimento, apagamento, se foi passada uma borracha no período, não há o que ser apurado. É coerente e lógico que, se os fatos foram apagados, esquecidos, não há o que lembrar, o que contar, o que registrar, a não ser como encenação. Não há sequer o que reparar. Porque os fatos foram apagados, como se nunca tivessem ocorrido. E por isso as leis de autoanistia são sinônimo de impunidade.

Passar uma borracha no passado só fragiliza a busca pela democracia

É importante contextualizar que, no fim dos anos de 1970, havia uma demanda de parcelas da sociedade civil brasileira pelo que se chamava anistia ampla, geral e irrestrita. O objetivo principal era possibilitar o retorno de exilados, bem como libertar presos políticos e tirar da clandestinidade quem estivesse perseguido pelas forças de repressão. O governo apresentou um projeto de lei que sofreu várias emendas e propostas de substitutivos. O ambiente político era muito tenso e os debates, acalorados. Ademais, não havia clareza se os termos propostos no Projeto de Lei que se tornou a Lei 6.683/79 significavam esquecimento ou memória. O contexto na época, portanto, era de intensa disputa política. Disputa, inclusive, da narrativa que começava a ser construí­da sobre o modelo de anistia política que estava sendo votada pelo Parlamento.

O Supremo Tribunal Federal decidiu na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153 que a lei de anistia política de 1979 foi uma lei de memória. Os votos dos ministros Cezar Peluso e Celso de Mello, que votaram pela improcedência da ação proposta pela OAB, afirmam textualmente que a Lei 6683/79 não é uma lei de autoanistia. Portanto, o modelo adotado no Brasil foi de uma lei de memória e por isso mesmo está em conformidade com os preceitos fundamentais da Constituição e foi recepcionada.

Por essa razão, há muitos anos é possível haver reparação, inclusive econômica. O esquecimento impede a reparação, como impede a responsabilização e a verdade. A lei de memória impõe a verdade, a reparação e a responsabilização. A lei de anistia de 1979 é uma lei de memória, e por isso ela é o oposto da impunidade.

Há mais de 40 anos, a sociedade brasileira chegou ao consenso de que quanto a crimes políticos e crimes contra a humanidade não pode existir impunidade. Tudo precisa ser investigado e processado judicialmente. Sejam crimes de 60 anos atrás, sejam crimes de um ano atrás. Se houver provas suficientes, com punições exemplares, para que nunca mais aconteçam. E a Lei 6.683/79, sendo uma lei de memória, exige a punição daqueles que torturaram, sequestraram e assassinaram pessoas durante a ditadura. “Passar uma borracha” no passado, esquecer o que aconteceu, só fragiliza a democracia. Apenas com anistia de memória e sem impunidade poderá haver reconciliação e pacificação nacional. Ditadura nunca mais. •


*Presidente da Comissão de Anistia.

Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Para não se repetir’

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