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O poder da empatia

Com a providencial intervenção de Barroso, o plenário do CNJ derruba afastamento de Gabriela Hardt e adia julgamento dos malfeitos da Lava Jato

Confissão. Substituta de Moro, a juíza admitiu ter discutido os termos do acordo que destinou 2,5 bilhões de reais para uma fundação gerida por procuradores – Imagem: Apajufe
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Em 20 de fevereiro, ao julgar uma reclamação disciplinar apresentada pelo PT contra a juíza Gabriela Hardt, substituta de Sergio Moro na 13ª Vara Federal de Curitiba e responsável pela homologação do escandaloso “Fundo da Lava Jato”, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, fez uma clamorosa defesa da magistrada após o corregedor nacional de Justiça, Luis Felipe ­Salomão, impedir o arquivamento do processo antes da conclusão de um processo de correição na 13ª Vara de Curitiba, na qual Moro e ­Hardt aprontaram. Contrariado com a disposição do colegiado em manter o caso aberto, Barroso chegou a pedir ao conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello “um pouquinho de empatia” com a “moça”. “Desde 2019, paira sobre ela, uma juíza, um processo administrativo disciplinar cujas consequências podem ser graves”, pontuou o piedoso magistrado. “Ninguém na vida deve estar sujeito a ficar quatro anos sob um inquérito que não termina.”

Os resultados da correição foram apresentados por Salomão na segunda-feira 15, um relatório de mais de mil páginas a comprovar que Hardt discutiu e analisou, “previamente e fora dos autos”, fato admitido pela própria juíza em depoimento, os termos do acordo para a constituição do tal fundo, uma montanha de 2,5 bilhões de reais que seria repassada pela Petrobras, sob a bênção do Departamento de Justiça dos EUA, para uma fundação administrada pelos procuradores da força-tarefa à margem da supervisão dos órgãos de controle. Observando que os atos atribuídos à juíza poderiam, em tese, configurar os crimes de peculato, corrupção privilegiada e corrupção passiva, o corregedor determinou o afastamento de Hardt da magistratura, bem como do juiz Danilo Pereira Júnior, atual titular da 13ª Vara de Curitiba, e dos desembargadores Carlos Eduardo ­Thompson Flores e Loraci Flores de Lima, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região – esses últimos acusados de desrespeitar repetidas vezes decisões do STF.

Houve um “atípico direcionamento” de recursos para “fins privados”, alerta o corregedor

O afastamento de Hardt durou pouco mais de 24 horas. Novamente evocando o longo período que a juíza responde ao processo disciplinar, Barroso considerou “ilegítima, arbitrária e desnecessária” a medida cautelar e abriu divergência no julgamento conduzido pelo CNJ na terça-feira 16. Com o colegiado rachado, o ministro conseguiu anular a decisão monocrática de Salomão pelo apertado placar de 8 votos a 7. Pereira Júnior também conseguiu escapar da punição, ao menos por ora. Já os desembargadores Thompson Flores e Loraci ­Flores de Lima, integrantes da 8ª Turma do ­TRF-4,­ responsável pela revisão das decisões em primeira instância da Lava Jato, não tiveram a mesma sorte. Por 9 votos a 6, o plenário do CNJ decidiu mantê-los afastados de suas funções.

O mérito das acusações não foi analisado. Sempre disponível aos procuradores da Lava Jato, como revelaram os diá­logos captados pelo hacker ­Walter ­Delgatti e apreendidos na Operação Spoofing, da Polícia Federal, Barroso solicitou mais tempo para analisar o relatório de Salomão com mais de mil páginas. A leitura atenta do documento talvez reduza a empatia do ministro com a República de Curitiba. O corregedor apontou a existência de um esquema de cash back na Lava Jato. Por meio de cooperação clandestina, à revelia de alerta da Secretaria de Cooperação Internacional da Procuradoria-Geral da República, autoridades norte-americanas tiveram acesso a provas para usar contra a Petrobras. Em troca, parte da multa aplicada à empresa nos EUA retornaria ao Brasil, para a constituição de uma fundação privada, a ser gerida pelos integrantes da força-tarefa.

Disputa. Salomão afastou a magistrada. Barroso comoveu-se com a “situação da moça” – Imagem: Luiz Silveira/Agência CNJ e Sérgio Amaral/STJ

O relatório menciona um “atípico direcionamento dos recursos obtidos a partir da homologação de acordos de colaboração e de leniência exclusivamente para a Petrobras”. Segundo Salomão, tal direcionamento “teria como finalidade obter o retorno dos valores na forma de pagamento de multa pela Petrobras às autoridades americanas, a partir de acordo sui generis de assunção de compromisso para destinação do dinheiro formalmente e originariamente prometido ao Estado Brasileiro – ou seja, dinheiro público – para fins privados e interesses particulares (fundação a ser gerida a favor dos interesses dos mesmos), sem qualquer participação da União”. Hardt não apenas tinha conhecimento, como confessou ter discutido os termos do acordo.

Em depoimento realizado em junho de 2023, ela admitiu que os procuradores da Lava Jato “vieram conversar informalmente” sobre o documento que precisaria ser homologado pelo Judiciário com urgência. “Aí eles me mandaram um esboço do acordo e me pediram, por favor, para não mostrar para ninguém, que era sigiloso.” As tratativas com o “Dr. ­Deltan” e “os meninos da força-tarefa” se deram por meio de um aplicativo de mensagens. “Acho que até este esboço da fundação veio por mensagem, tá?”

Para encerrar os processos nos EUA, a Petrobras aceitou pagar uma multa de 853,2 milhões de dólares – o equivalente a 4,5 bilhões de reais. As autoridades norte-americanas concordaram em direcionar 80% desse montante, cerca de 682 milhões de dólares, para o Brasil. Para Salomão, os procuradores jamais poderiam ter se apropriado de parte desses recursos, muito menos por meio de “negociações paralelas para flexibilização das regras”. Em um país onde a Justiça caminha a passos de tartaruga, a celeridade dos procuradores da Lava Jato neste caso surpreende. O acordo com os EUA foi celebrado pela trupe em 23 de janeiro de 2019. No mesmo dia, às 16h27, a força-tarefa protocolou a petição em juízo. Em menos de 48 horas, às 10h14 de 25 de janeiro, Hardt proferiu a decisão. De forma claramente irregular. A homologação do acordo cível, observa Salomão, foi realizada por um “juízo criminal absolutamente incompetente”.

O CNJ manteve a suspensão de dois desembarbargadores da Oitava Turma do TRF da 4ª Região

Ainda que o mérito não tenha sido julgado, a reintegração de Hardt é uma péssima sinalização, observa o advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay: “Com uma votação apertada, a volta ao cargo da juíza, que teve 7 votos duríssimos contra ela, é um ponto que deixa muito mal o Judiciário. Em um caso de tamanha gravidade, ela será mantida em atividade”. Talvez tenha pesado a reação corporativa da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), que recriminou a decisão monocrática de Salomão, e da Associação Paranaense dos Juízes Federais (Apajufe), que ameaçou até mobilizar uma greve em solidariedade a Hardt.

No caso dos desembargadores da Oitava Turma do TRF-4, pesou o reiterado descumprimento de decisões do Supremo. O corregedor observou que Thompson­ Flores e Loraci Flores ­Lima “impulsionaram processos que estavam suspensos por decisão do ministro Ricardo Lewandowski, utilizando-se de prova declarada inválida pelo STF, em comando do ministro Dias Toffoli, que resultaram no restabelecimento de mandados de prisão contra Raul Schmidt Júnior e Tacla Duran”.

Insubordinado. Thompson Flores desrespeitou decisões do Supremo repetidas vezes – Imagem: Sylvio Sirangelo/TRF4

Antigo prestador de serviços da ­Odebrecht, o advogado Rodrigo Tacla ­Duran acusa os procuradores da Lava Jato de cobrar uma “taxa de proteção” para evitar a persecução penal de alvos da operação. Carlos Zucolotto, à época sócio do escritório de advocacia da esposa de Moro, seria um dos intermediários do esquema. Vivendo na Espanha, ­Tacla Duran se dispôs a viajar ao Brasil para apresentar provas das acusações que tem feito, mas recuou justamente após o TRF-4 restituir a sua prisão. Thompson Flores, convém recordar, é o desembargador que cassou em tempo recorde um habeas corpus concedido pelo colega Rogério Favreto para libertar Lula em 8 de julho de 2018, quando assumiu o plantão do tribunal.

Embora citado diversas vezes, Moro ainda não é alvo do CNJ, dividido quanto à possibilidade de incluí-lo no processo. Alguns conselheiros entendem que o ex-juiz pode ser investigado por fatos anteriores à sua saída da magistratura. Nesse caso, poderia ser declarado ficha suja e impedido de disputar novas eleições. Outros entendem, porém, que a pretensão punitiva é indevida, uma vez que o caso foi aberto após Moro pedir exoneração. O CNJ, vale lembrar, analisa apenas a conduta de juízes, razão pela qual o ex-procurador Deltan Dallagnol também não figura entre os alvos. •

Publicado na edição n° 1307 de CartaCapital, em 24 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O poder da empatia’

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