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Estupro, assédio, aliciamento: Sem leis claras, metaverso é terreno fértil para crimes virtuais

A discussão da adaptação de leis locais já existentes para o metaverso pode ser o caminho para uma legislação global na internet

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O metaverso já é uma realidade. Dezenas de plataformas oferecem mundos inteiramente virtuais e prometem uma experiência imersiva da conexão social, como define a Meta, empresa-mãe de plataformas como Facebook, Instagram e WhatsApp. A mudança de nome, aliás, remete à ambiciosa aposta que a companhia tem feito na realidade virtual e aumentada.

Metaverso, este nome que parece saído de filmes de ficção, é o termo guarda-chuva para experiências de uma realidade virtual interconectada. Antes restrito aos jogos, o fenômeno tem se adaptado a outras áreas, como ao trabalho, shows ou passeios no shopping. 

Os males da sociedade, naturalmente, encontram seu caminho para a nova “realidade paralela”. 

Recentemente, uma pesquisadora da BBC se passou por uma criança de 13 anos dentro de um ambiente virtuais do metaverso. Testemunhou aliciamento de menores, divulgação de material sexual, insultos racistas e até uma ameaça de estupro. 

Outros usuários relataram também terem encontrado avatares controlados por crianças em clubes de strip virtuais, onde é possível assistir material sexual explícito. 

Apesar da nova realidade apresentar interações para crianças, elas podem se misturar livremente com adultos já que a regulamentação dos mundos virtuais ainda é um terreno obscuro. 

E este não foi um caso isolado. 

Logo após o lançamento da realidade virtual da Meta, chamada Horizon World, uma usuária britânica alegou que seu avatar foi vítima de assédio sexual coletivo. 

Em uma publicação na plataforma Medium, Nina Jane Patel relatou o ocorrido. 

“Dentro de 60 segundo após entrar, fui assediada verbal e sexualmente por 3 ou 4 avatares masculinos, com vozes masculinas. Eles estupraram o meu avatar e eu tirei fotos”, conta a usuária, que contou se sentir psicologicamente abalada pelo ocorrido. 

Ao tomar conhecimento da agressão, a Meta informou que Patel não teria utilizado uma ferramenta chamada “SafeZone” que protegia os avatares de ameaças. 

O posicionamento da plataforma fez ressurgir a discussão sobre a culpabilidade da vítima nestes casos, incumbindo aos usuários medidas de proteção que deveriam ser dos criadores de tais realidades virtuais. 

Apesar de não ter sido “tocada” no mundo real, o objetivo da realidade virtual é justamente enganar o cérebro a ponto de fisicamente experimentar tais sensações. No entanto, há quem descarte ou diminua a proporção do assédio por não haver corpos “reais” envolvidos. 

Embora o metaverso prometa ser um espelho do mundo físico, o que acontece nas plataformas não é “real” quando se trata de imputação criminal. 

Os aspectos de responsabilização de atos praticados nas realidades virtuais dependem de adaptações jurídicas das leis já existentes para condutas reais. 

“Esses ambientes digitais ou virtuais são reflexos daquilo que a gente tem no nosso mundo físico, então há uma certa correlação entre os problemas entre esses dois universos”, afirma o advogado especialista em Direito Digital, Caio Lima. 

Para ele, apesar das leis existentes enfrentarem algumas dificuldades para se adaptar à nova realidade cibernética, elas são capazes de tutelar direitos mesmo no novo ambiente. 

Diante dos casos recentes de estupros virtuais, muitos deles cometidos no metaverso, modificações ampliativas da lei permitiram a aplicação do Código Penal sobre esses crimes. 

Esse entendimento, porém, não é consenso entre os especialistas.

“Apesar da aceitação e crescimento desse entendimento, a plena aplicação do artigo 213 do Código Penal ao tipo de casos cibernéticos ainda me causa certo desconforto”, avalia a advogada criminalista Paola Forzenigo. 

A equiparação entre o crime cometido no mundo real e aquele cometido no ciberespaço pode ferir a proporcionalidade entre as condutas e possíveis punições.

“Ambas as modalidades são graves e demandam resposta estatal, todavia, para fins de segurança jurídica, proporcionalidade e até razoabilidade, melhor do que formalmente equipará-las seria a criação de tipo penal específico ao cenário virtual”, conclui. 

Quanto à presença de crianças no metaverso e o acesso facilitado a conteúdos com classificações etárias ou ainda à prática de condutas sexuais, os especialistas são categóricos em apontar como responsáveis as plataformas criadoras dos espaços virtuais. 

“A própria legislação fala que é preciso ter tecnologia para confirmar que aquela criança está no ambiente autorizada pelos pais ou pelo responsável”, observa Caio Lima. “A plataforma pode responder se ela permitiu que uma criança ou um adolescente, entrasse num ambiente que era restrito para maiores.”

Em resposta a relatos de crimes vivenciados no mundo virtual criado pelo Facebook, a Meta diz ter implementado ferramentas para permitir que os usuários bloqueiem a interação com outros usuários e que busca melhorias para a segurança  “à medida que aprende como as pessoas interagem nesses espaços”.

Para além dos problemas ligados à tipificação penal, a descentralização do sistema utilizado para criar a realidade virtual traz novas discussões sobre quais leis se adequariam àquelas realidades, e sobre quais seriam as jurisdições responsáveis em processar as ações.  

“Vamos aplicar a legislação do dono da plataforma? A do usuário que praticou o ato? Ou a legislação de onde se encontra a vítima?”, questiona Lima. “O problema surge se eu estou fisicamente no Brasil mas virtualmente dentro da União Europeia. Qual seria a legislação que eu vou aplicar? Me parece que, nessa situação, se teria que aplicar a lei do local físico da pessoa”.

No entanto, há um fio de esperança sobre o espaço cinzento da internet: que países, de diferentes continentes, uniformizem o tratamento no ambiente digital. 

“O caminho é esse. Demora a se pensar e construir a documentação necessária para a adesão dos países. Mas, sem dúvida nenhuma, esse é um caminho que deve ser perseguido”, defende Lima. “É a tendência quando se fala de um ambiente que não tem mais fronteiras territoriais.”

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