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‘Correnteza’: romance de Adriana Falcão nos leva a maratonar vida de quatro mulheres

Nem todo leitor é do tipo que estabelece metas de leitura para ano. Todo leitor voraz quer, entretanto, ler sempre mais. Há também o leitor que, diante do imprevisível da pandemia que assola o planeta, viu-se com uma incômoda dificuldade de concentração. Existem ainda aqueles […]

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Nem todo leitor é do tipo que estabelece metas de leitura para ano. Todo leitor voraz quer, entretanto, ler sempre mais. Há também o leitor que, diante do imprevisível da pandemia que assola o planeta, viu-se com uma incômoda dificuldade de concentração. Existem ainda aqueles que gostariam de retomar o ritmo de leitura que já fora um hábito antes da avalanche de estímulos virtuais que desviam o foco do bom e velho livro.
Para todos estes tipos de leitores, mas especialmente para os dois últimos, “Correnteza” (2021, Ventania Editorial), escrito por Adriana Falcão, é uma escolha segura para a leitura das férias de verão. Primeiramente, porque Falcão não consegue escapar do seu talento de roteirista. Assim, ler “Correnteza” é quase como maratonar alguns episódios de sua série cômica, ou tragicômica, preferida. Sem desculpas, portanto, para deixar o livro descansando enquanto descobre uma série nova no streaming. A experiência de ler “Correnteza” é muito parecida com assistir uma série, só que melhor. Em segundo lugar, porque Falcão cria um ritmo intenso na fala das personagens que praticamente impede a pausa na leitura, colaborando com aqueles que sofrem em ficar longe das notificações do smartphone. É literatura sem intervalo, sem chance para distrações. É entretenimento, mas também é reflexão.
O romance conta a história de quatro mulheres brasileiras, de diferentes gerações, da mesma família. A força natural que leva uma geração feminina à outra, como a potência da água que segue seu caminho, é a correnteza que dá título à obra. “Eu e elas, tudo que eu tenho, tudo que eu fiz, eu que fiz. A Teresa. Que fez a Débora. Que fez a Luísa. Ou seja, fiz todas, se não fosse eu, não tinha elas”, reflete a personagem Manuela.
O livro é narrado em primeira pessoa, justamente por essas quatro personagens cujas vozes se revezam. Assim, temos quatro narradoras de uma história cujo denominador comum é, além do parentesco, ser mulher em um Brasil que se moderniza, mas nem tanto. “Mulheres parindo todas as pessoas que já passaram por esse mundo”, como diz uma das personagens. A narração autodiegética é intercalada com alguns diálogos entre avó e neta, mãe e filha, e assim por diante. Sempre que há mudança na voz narradora, aparece a indicação de qual personagem fala. Tal recurso ajuda organizar o mosaico, mas sequer seria necessário porque cada uma delas tem uma voz muito particular criada por Falcão, com linguagem, referências culturais e históricas, e dilemas próprios. São vozes com uma pitada de exagero também, um vestígio da escrita para a televisão, mas que ajuda a manter o tom. A escolha por uma narração neste formato acaba gerando uma economia de descrições do ambiente e das demais personagens. Ao mesmo tempo, deixa a narrativa veloz, como pensamentos muito rápidos que pulam de assunto em assunto. Por causa de algumas pistas, sabemos que o enredo transcorre no Rio de Janeiro, desde a década de 1930, quando nasce Manuela, até os dias de hoje, em plena juventude da bisneta Luísa.
Os dramas dessas mulheres são típicos de uma classe média alta branca e urbana. Assim, “Correnteza” fica distante de parte da produção literária mais recente, como os premiados “Torto e Arado” (2019, Todavia), de Itamar Vieira Júnior, “Além do Rio dos Sinos”, de Menalton Braff” (2020, Reformatório), e “Paraízo-Paraguay” (2019, Caiaponte), de Marcelo Labes, cujas histórias estão situadas no espaço rural. Porém, o livro de Falcão também faz crítica social. Mas com a proeza de conseguir fazer rir. Assim, “Correnteza” se aproxima de “Macha” (2019, L&PM), romance delicioso e divertido da também roteirista Cláudia Tajes. Em “Macha”, a bancária Celina acorda em um corpo de homem, uma estranheza inspirada em “A Metamorfose”, de Kafka. Celina precisa ser muito “macha” para encarar a vida como mulher. Em “Macha”, Tajes evita escrever o nome do presidente Jair Bolsonaro (PL), mas o contexto político está ali.
Em “Correnteza”, ocorre o oposto. A personagem Manuela, a matriarca, tem ojeriza a Bolsonaro e o cita como fonte de seus problemas e também do país. Seu horror ao político é tanto que ela chega a encontrar uma maneira de não nominá-lo, chamando-o de “Ele não”. Idosa, Manuela é bem diferente daquela parente que usa imagem da bandeira do Brasil que chora uma lágrima como perfil do Facebook e dispara fake news conspiratórias e antivacina pelo Whatsapp. Manuela foi contra a ditadura e continua lúcida, mais esclarecida que a filha Teresa. A filha assume o papel de “primeira-dama” de um político adúltero e sem ideologia clara. A terceira geração fica por conta de Débora, uma jornalista progressista que se vê presa em um casamento com o típico “esquerdo macho”. Por fim, está a bisneta de Manuela, Luísa, que experimenta novas possibilidades de relacionamentos, como um namoro a três, com um rapaz e uma moça. O livro termina com uma eleição presidencial em que Bolsonaro é um dos candidatos. A ficção, como se sabe, não tem o compromisso de ser fidedigna, apenas o compromisso de ser verossímil. Assim, o leitor que quiser saber o resultado do pleito, precisa ler “Correnteza”.

Paula Sperb é crítica literária e jornalista, doutora em Letras com pós-doutorado na mesma área pela UFRGS

 

‘Correnteza’ Autora: Adriana Falcão. Editora: Ventania Editorial. Páginas: 120 Preço: R$ 49,90.

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