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Campo minado

Lula tenta posicionar-se de forma mais efetiva na guerra da Ucrânia, mas é pego no meio do tiroteio

As declarações do presidente à tevê chinesa e a visita do chanceler Lavrov a Brasília, onde se reuniu com o ministro Vieira, acirraram a animosidade dos Estados Unidos e da União Europeia. Nem tudo, porém, está perdido, conforme vaticina (e torce) parte da mídia nativa – Imagem: CCTV e Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR
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O presidente Lula encontrará o colega Marcelo Rebelo de Souza e o primeiro-ministro António Costa, as duas principais autoridades do governo português, no sábado 22, em Lisboa. É o dia de mais um aniversário do descobrimento do Brasil por Portugal. Descoberta ou invasão? O território que hoje compõe o Brasil tinha, em 1500, cerca de 3 milhões de indígenas (agora tem metade, conforme dados prévios do Censo Demográfico de 2022). A ultradireita lusitana, terceira força parlamentar, quer fazer de seu país uma referência global em reacionarismo. Em maio, juntará na capital extremistas da cepa de Jair Bolsonaro. A turma promete azucrinar a visita de Lula. Não é o único dissabor à vista para o petista. E o motivo é justamente uma “invasão”.

A passagem de Lula pela China para reunir-se com o presidente Xi Jinping, na sexta-feira 14, seguida da visita a Brasília do ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, na segunda-feira 17, deixou norte-americanos e europeus (por meio de vozes medianas, é verdade) na bronca com o brasileiro, em razão da guerra na Ucrânia. A reação complica os planos do petista de ser um dos mediadores na busca de uma saída para o conflito. É de se esperar que em Portugal, onde vai participar também da entrega de um prêmio a Chico Buarque e dos 49 anos da Revolução dos Cravos, que derrubou a ditadura salazarista, e em seguida na Espanha, onde conversará com o primeiro-ministro Pedro Sánchez, surjam perguntas da mídia e das autoridades a respeito da situação na Ucrânia e da aparente oposição lulista ao Ocidente.

O petista defende que alguns países formem um “clube da paz”. Foi a mensagem deixada na China, que tem ela própria uma proposta para a resolução do conflito. A jornalistas brasileiros em um hotel em Pequim, Lula apontou o dedo não para o russo Vladimir Putin, mas para o outro lado. “É preciso que os Estados Unidos parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz. É preciso que a União Europeia comece a falar em paz pra gente poder convencer o Putin e o (presidente ucraniano, Volodymyr) ­Zelensky de que a paz interessa a todo mundo e a guerra só tá interessando, por enquanto, aos dois.” A declaração mantém os termos de intervenções anteriores. Em março do ano passado, o presidente tinha dito coisa parecida no México. Dois meses depois, foi explícito na revista norte-americana Time, que acaba de elegê-lo uma das 100 personalidades mais influentes do mundo. “Putin não deveria ter invadido a Ucrânia. Mas não é só o ­Putin que é culpado, são culpados os Estados Unidos e é culpada a União Europeia. Qual é a razão da invasão da Ucrânia? É a Otan? Os Estados Unidos e a Europa poderiam ter dito: ‘A Ucrânia não vai entrar na Otan’. Estaria resolvido o problema.”

O presidente acredita ter deixado claro, em declarações anteriores, o repúdio à invasão do território ucraniano pela Rússia

Otan é a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar entre EUA e Europa selada na Guerra Fria. A União Soviética tombou, mas a Otan segue de pé (com “morte cerebral”, disse certa vez o francês Emannuel Macron, que foi à China dias antes de Lula). Diplomatas norte-americanos da linha realista em geopolítica, como Henry Kissinger (vivo) e George Kennan (morto) diziam que a Otan deixa os russos acuados e que, por isso, seria melhor conter a expansão da organização no Leste. A vontade ucraniana de aderir ao grupo, somada a um desejo de Putin de reaver uma área que ele considera historicamente da Rússia, detonaram a guerra em 2022. E se o Kremlin queria manter a Otan longe, se deu mal. Por obra da guerra, a Finlândia entrou na aliança e a Suécia também caminha nessa direção.

Ao voltar da China, Lula recebeu ­Lavrov no Palácio da Alvorada. O russo estava em um giro latino-americano que incluiu Cuba, Nicarágua e Venezuela. Antes de ir ao presidente, tinha estado com o ministro das Relações Exteriores, Mauro ­Vieira, e feito uma declaração no ­Itamaraty. Por ter falado em seu idioma, é difícil saber com exatidão o que disse, mas o sentido era de que Brasil e Rússia partilham de uma mesma visão multipolar (manifestou outra vez apoio à nossa entrada no Conselho de Segurança da ONU) e têm uma compreensão similar sobre a guerra na Ucrânia. Gota d’água para a UE e os EUA.

O eslovaco Peter Stano, porta-voz principal para Assuntos Externos da União Europeia, disse que a Rússia é a “única responsável” pela guerra. “Ela gerou provocações e agressões ilegítimas contra a Ucrânia. Não há questionamentos sobre quem é o agressor e quem é a vítima.” Segundo ele, sem apoio, a Ucrânia será destruída. O porta-voz de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby, afirmou que Lula “está reproduzindo propaganda russa e chinesa” e que “é profundamente problemático” o modo como o Brasil culpou norte-americanos e europeus. A secretária de imprensa da Casa Branca, ­Karine Jean-Pierre, comentou que seu governo ficou “assustado” com o Brasil, por causa da declaração de Lavrov, e que ­Lula “não foi neutro e não é verdadeiro”, ao acusar os anti-Putin. “Nenhum país arrastou a Rússia para a guerra. A Rússia escolheu iniciar este conflito.”

Curioso, o mau humor ocidental com Lula. Memória curta? O comunicado divulgado por Brasil e Alemanha em 30 de janeiro, após o primeiro-ministro alemão Olaf Scholz visitar o petista, dizia que os dois “deploraram enfaticamente a violação da integridade territorial da Ucrânia pela Rússia e a anexação de partes de seu território como violações flagrantes do direito internacional”. O comunicado de 10 de fevereiro após Lula ir a Joe Biden em Washington era similar. “Eles (os dois presidentes) lamentaram a violação da integridade territorial da Ucrânia pela Rússia e a anexação de partes de seu território como violações flagrantes do direito internacional”. Dias depois, o Brasil votou na ONU a favor de um cessar-fogo e da retirada das tropas russas da Ucrânia. Diante da chiadeira recente, Lula voltou a colocar em primeiro plano a invasão de um país por outro, ao almoçar com o presidente da Romênia, Klaus Werner Iohannis, na terça-feira 18, em Brasília. “Ao mesmo tempo que meu governo condena a violação da integridade territorial da Ucrânia, defendemos uma solução política negociada para o conflito.”

Enquanto Jinping reforça a aliança com a Rússia de Putin e oferece um plano de paz, os EUA de Biden apostam, equivocadamente, na derrota inquestionável de Moscou – Imagem: Jim Watson/AFP e Pavel Birkin/Sputnik/AFP

Por que Lula tinha enfatizado antes a condenação da invasão russa e, recentemente, preferiu ressaltar “culpas” pela falta de uma solução? A guinada fora anunciada em um café com jornalistas, em 6 de abril, pouco antes da viagem à China. “O Brasil já fez a crítica que tem de fazer. O Brasil defende a integridade territorial de cada nação. Portanto, nós não concordamos com a invasão da Rússia à Ucrânia. Agora, nós achamos que o mundo desenvolvido, sobretudo a União Europeia e os Estados Unidos, não poderia ter aceitado entrar na guerra da forma com que entrou com rapidez, sem antes gastar muito tempo tentando negociar. E negociar a paz é muito complicado.”

A guinada resulta, tudo indica, da compreensão sobre a solução factível para o fim da guerra. Em conversa com ­CartaCapital em março, o embaixador Celso Amorim, assessor especial de Lula e ex-ministro das Relações Exteriores do petista no passado, tinha comentado crer que haverá “a paz possível”. Ou seja, dificilmente alguém sairá dessa situação sem ceder. Foi esse ponto de vista que ele expressou em entrevistas recentes. “A paz ideal dos russos e a paz ideal dos ucranianos não acontecerá”, disse à Globonews na terça-feira 18. “Há uma expectativa falsa de que vão derrotar a Rússia”, mas isso não ocorrerá, na avaliação dele, graças ao poderio militar do Kremlin.

Amorim foi a Moscou e falou com ­Putin no fim de março, a pedido de Lula. À Globonews, disse que o Brasil não tem uma visão de que há “mocinho e bandido” nesta guerra. Não fez tal comparação, mas a memória de Lula sobre a Operação Lava Jato, por exemplo, não permite ao presidente ter ilusões quanto a um pretenso papel de “mocinho” por parte dos EUA. “Tenho consciência de que a Lava Jato fazia parte de uma mancomunação entre o Ministério Público brasileiro, a Polícia Federal brasileira e a Justiça americana, (na verdade) o Departamento de Justiça (americano)”, afirmou o petista em uma entrevista em março. “Era pra destruir mesmo, porque as empresas da construção civil brasileiras estavam ocupando espaço no mundo inteiro.”

Após as críticas, Lula acertou o prumo no encontro com o presidente da Romênia. Em maio, o petista irá à reunião do G-7 no Japão

A Lava Jato foi às ruas pela primeira vez em 2014. A Casa Branca era ocupada por Barack Obama, do qual Biden era vice. Foi com a dupla no poder que a agência ianque de bisbilhotagem NSA espionou Dilma Rousseff e a Petrobras. A arapongagem veio à tona em 2013, revelada por Edward Snowden, asilado em Moscou desde então (em 2022, obteve a cidadania russa). Ao lançar um filme sobre Snowden em 2016, o cineasta Oliver Stone veio ao Brasil e disse acreditar que a espionagem abasteceu a Lava Jato. “Essa informação vai para algum lugar, não fica lá guardada. É usada para destruir, mudar governos, grandes empresas, a Petrobras, a empresa petrolífera da Venezuela. Isso pode levar à guerra.”

Em 2014, ano da Lava Jato, um golpe na Ucrânia depôs um presidente que, para alegria de Putin, desistira de unir seu país à União Europeia. Biden foi a Kiev dois meses depois de garantir o apoio de Tio Sam aos golpistas. Alguns dos nomes da era Obama envolvidos naquela crise estão agora com Biden, caso do secretário de Estado Antony Blinken. Após o golpe, um filho de Biden, Robert Hunter, foi trabalhar na estatal ucraniana de gás, a Burisma. Ficou lá até 2019, ano da eleição de Zelensky. Donald Trump apertou Zelensky para que declarasse ao mundo que Biden havia pressionado a Ucrânia para engavetar uma investigação sobre Hunter. Queria prejudicar o futuro rival na eleição de 2020. O caso custou-lhe um processo de impeachment, do qual escapou. No mês passado, Trump comentou publicamente que, se voltasse à Presidência, a guerra na Ucrânia acabaria em um dia, pois não seria “vital” aos EUA defender aquele país.

Lula voltou à Presidência e tem seu prestígio internacional testado em um mundo mais complexo. A ver a receptividade a ele não só em Portugal e na Espanha nos próximos dias, mas em maio, na coroação do Rei Charles III na Inglaterra e na reunião de cúpula do G-7 no Japão. •

Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Campo minado’

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