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Agonia sem-fim

Um ano após a revelação da tragédia humanitária que escandalizou o mundo, o drama do povo Yanomâmi persiste

As equipes de saúde enfrentam numerosos obstáculos para acessar áreas próximas de garimpos – Imagem: Igor Evangelista/MS
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No início de 2023, imagens de crianças e adultos ­Yanomâmi em estado de desnutrição severa, esqueléticos, vítimas da fome e da atuação criminosa do garimpo ilegal, chocaram o mundo e levaram o governo federal a decretar situação de emergência em saúde pública. Passado um ano do decreto, a realidade na região parece ter mudado pouco. A insegurança alimentar e doenças evitáveis, como verminoses, malária e pneumonia, ­continuam presentes na vida dos indígenas, levando muitos deles à morte. A violência dos garimpeiros que teimam em permanecer no local também persiste. No ano passado, foram registradas 363 mortes na Terra Indígena, 20 a mais que as contabilizadas em 2022, último ano do governo Bolsonaro. O Ministério da Saúde diz não ser possível estabelecer a comparação, devido ao apagão de dados na gestão anterior. Reconhece, porém, a gravidade da tragédia humanitária e admite até que a quantidade de mortes pode ser até maior, devido ao elevado índice de subnotificações de óbitos naquele território.

Segundo Júnior Hekurari ­Yanomâmi, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena e representante dos ­Yanomâmi na Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, muitas crianças morrem nas aldeias sem o governo tomar conhecimento. “Somente quando há acompanhamento da equipe de saúde ou quando a morte se dá na unidade básica ou no hospital, ela é contabilizada. Os óbitos em comunidades afastadas, sem a presença do governo, não entram na conta. É feita uma ficha declaratória para investigar depois. Então, esse número será atualizado daqui um ou dois anos. O total de mortes do povo ­Yanomâmi é bem maior que o divulgado.”

Enfermidades evitáveis, como desnutrição, malária e pneumonia, figuram entre as principais causas de mortalidade na terra indígena – Imagem: Felipe Medeiros/Amazônia Real

Weibe Tapeba, secretário de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, também admite a possibilidade de a mortandade ser ainda maior, sobretudo durante a gestão Bolsonaro. “Não temos como comparar 2023 com 2022 porque tivemos um apagão de assistência à saúde indígena. Além disso, possivelmente estamos contabilizando mortes que podem ser de 2022 ou 2021, dado que será confirmado a partir de um inquérito sanitário que estamos realizando no território”, explica. “Para o Ministério da Saúde, 2023, quando começamos a atuar no território, é o ano-base. Não são somente os dados de mortalidades que estão sendo relatados, mas todas as informações envolvendo malária, doenças diarreicas e respiratórias, enfermidades que estão aumentando exatamente porque não estamos conseguindo restabelecer a nossa assistência. Vamos fazer um pente-fino no próprio território.”

Malária, desnutrição e pneumonia figuram entre as causas de morte mais comuns, embora seja frequente a ocorrência de mais de uma enfermidade para acelerar o óbito. “Quando uma criança morre de malária, ela não morre só de malária, ela morre de malária e desnutrição ao mesmo tempo. Eu mesmo presenciei de 15 a 18 mortes em 30 dias que fiquei dentro do território. A maioria é de crianças com menos de 1 ano e meio. São doenças e mortes que poderiam ter sido evitadas, tem cura para isso. O Estado precisa reconhecer o problema”, dispara Júnior Hekurari. A falta de assistência à saúde se soma a dificuldade que os indígenas têm para produzir nas aldeias, devido à insegurança e à ação dos garimpeiros, o que potencializa a insegurança alimentar dos Yanomâmi. “Nossas comunidades são muito fortes. Mesmo doentes, muitos indígenas trabalharam duro nas roças no ano passado. Plantaram macaxeira, banana, milho, batata… Mas isso demora para dar retorno, às vezes dez ou 12 meses”, diz o líder Yanomâmi.

Cerca de 5 mil garimpeiros conseguiram furar o cerco das forças de segurança e voltaram a invadir o território

Paralelamente ao decreto de emergência em saúde pública, o governo Lula também instalou, em janeiro do ano passado, o Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária das Populações em Território ­Yanomâmi, envolvendo os ministérios dos Povos Indígenas, da Saúde, da Justiça, do Meio Ambiente, da Defesa, do Desenvolvimento e Assistência Social, além do Exército, da Força de Segurança Nacional, da Funai e do Ibama. Mesmo com todo esse aparato, a crise humanitária persiste. Para o indigenista e ex-presidente da Funai Sydney Possuelo, falta vontade política do Estado brasileiro para enfrentar o problema, referindo-se tanto ao governo federal quanto ao Congresso Nacional e ao Judiciário.

“O Estado brasileiro não resolve porque não quer. Parece haver uma fragilidade, uma dependência do Congresso para tomar as decisões. O Executivo tomou providências mais no âmbito político, mas as ações diretas para retirar os garimpeiros foram tímidas. O Exército tem homens lá dentro sem o menor preparo para defender as regiões de fronteira e proteger o território indígena. Onde é que está a Marinha, que poderia fechar os rios, que estão sendo invadidos e poluídos? Por que o espaço aéreo não está fechado e, se está, por que os helicópteros dos garimpeiros continuam sobrevoando a região? Há uma ação feita para inglês ver”, critica Possuelo. “Para resolver o problema, não precisa inventar a roda. Já está escrito na Constituição Federal o que tem de ser feito”, completa.

Possuelo lembra que, quando foi presidente da Funai, no início dos anos 1990, conseguiu não só a demarcação da TI ­Yanomâmi como expulsou mais de 60 mil garimpeiros. “É claro que a situação era diferente, hoje eles estão mais organizados. Mas, quando o Estado quer, quando o Executivo, o Legislativo e o Judiciário cumprem as suas responsabilidades, eles colocam seus órgãos para atuar e resolvem. Não me parece ser o caso agora”, alfineta, criticando a tese do marco temporal aprovada no Congresso, apontada como “o tiro de misericórdia sobre os povos indígenas”.

Júnior Hekurari Yanomâmi e Sydney Possuelo criticam as ações descoordenadas do Estado e cobram o fechamento do espaço aéreo para bloquear a entrada de aeronaves a serviço do garimpo ilegal – Imagem: Acervo pessoal, Sgto Muller Marin/Forca Aérea Brasileira, Bruno Kelly/MMA e Júlia Prado/MS

No início de 2023, havia na TI ­Yanomâmi cerca de 20 mil garimpeiros. Hoje, segundo Júnior Hekurari, tem cerca de 5 mil. “A força-tarefa até quebra os equipamentos, mas eles têm muita tecnologia, planejamento, e recuperam em questão de horas. O Exército fez o mapeamento para bloqueio de espaço aéreo, mas não continuou. Para resolver, a inteligência do governo tem de funcionar”, destaca, acrescentando que os garimpeiros transitam livremente na fronteira com a Venezuela e que a insegurança no território compromete o atendimento médico dos indígenas. “Como a segurança falhou, a saúde recuou.”

Segundo o Ministério dos Povos Indígenas, houve uma redução de 85% das áreas para mineração ilegal na TI ­Yanomâmi entre fevereiro e dezembro de 2023, se comparado ao mesmo período do ano anterior, e uma queda de 50% no desmatamento da Amazônia, além da destruição de 340 equipamentos utilizados pelo garimpo ilegal. O governo federal também conseguiu reabrir seis dos sete polos de saúde na TI ­Yanomâmi. Em nota à reportagem, o Ministério da Justiça faz um balanço da atuação na TI em 2023, destacando a proteção de várias comunidades Yanomâmi, fiscalização das pistas de pouso e decolagem clandestinas em apoio à Polícia Federal e à Agência Nacional de Aviação Civil, e nas instalações dos polos de saúde da Sesai. Segundo a nota, a Força Nacional permanece atenta e já aumentou o efetivo em 32% entre janeiro e fevereiro deste ano.

Júnior Hekurari até reconhece o empenho do governo Lula no primeiro semestre do ano passado, mas afirma que, a partir de agosto, a força-tarefa montada para resolver a crise trabalhou de forma desarticulada, facilitando o retorno dos invasores. “O governo não tinha uma estratégia para combater o garimpo. No início, quando o presidente Lula decretou a emergência, fizeram muito barulho para afugentar os garimpeiros. A partir de julho e agosto, eles perceberam a fragilidade e começaram a entrar de novo. As equipes de saúde não conseguiam mais ir às comunidades. Tem muito jogo político. O ­Ibama quer trabalhar de um jeito, o Exército trabalha de outra forma, eles não se reúnem para resolver o problema. Estamos reféns em nosso próprio território, porque os invasores estão impedindo as equipes de saúde de atender as nossas crianças.”

“As equipes da Funai e da Saúde precisam de segurança para realizar seu trabalho”, diz Sonia Guajajara

O Ministério dos Povos Indígenas cita a complexidade da crise como uma das dificuldades no enfrentamento do problema e diz que, no primeiro ano de atuação, priorizou ações emergenciais. A partir de agora, quer implementar ações permanentes, dando o exemplo da instalação do Casa do Governo, prevista para ser inaugurada na quinta-feira 29, com foco no atendimento às demandas indígenas de Roraima. A unidade vai funcionar na capital, Boa Vista, e será uma espécie de base de interagências dentro do território para fiscalização permanente, com o apoio das Forças Armadas, Polícia Federal, Ibama, Força Nacional de Segurança, Sesai e Funai.

“As equipes da Funai e da Saúde precisam de segurança para realizar seu trabalho. Com a presença de garimpeiros fortemente armados, o trabalho fica totalmente comprometido. É necessário o controle total do espaço aéreo e fluvial através das forças de segurança, para concretizar o comando do presidente Lula. E a Casa de Governo será uma transição para que essa atuação articulada seja mais efetiva”, explica a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara. Tapeba acrescenta que a Casa do Governo vai ajudar a distensionar problemas existentes na coordenação da própria operação de emergência.

Outra medida anunciada pelo governo Lula para minimizar a crise sanitária na TI Yanomâmi é a construção do primeiro hospital indígena do País, a ser instalado em Boa Vista, e a construção e reforma de 22 unidades de saúde básica dentro da TI Yanomâmi, além de um centro de referência para serviços de atenção especializada, mais especificamente no polo-base de Surucucu, cujo objetivo é levar serviços de média e alta complexidade para dentro do território. Segundo a Sesai, o governo também vai contratar novos profissionais de saúde para atender a população ­Yanomâmi. “Quando chegamos, tínhamos apenas oito profissionais do Programa Mais Médicos, e hoje são 28. Vamos melhorar o salário, oferecer gratificações através de auxílio para alimentação, e criar, especialmente, um incentivo para quem atuar naquela região”, explica Tapeba.

Lula mobilizou ministros de seis pastas, além do Exército e da Força Nacional, para estancar a crise – Imagem: Ricardo Stuckert/PR

O governo federal anunciou ainda a liberação de um crédito extraordinário de 1,2 bilhão de reais, a ser utilizado em ações imediatas para atender à demanda dos indígenas da região. No início de fevereiro, o Ministério da Saúde encaminhou ao STF, atendendo a uma determinação do presidente da Corte, o ministro Luís Roberto Barroso, um plano de ação para ser aplicado não só na TI Yanomâmi, mas também nos territórios Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapó, Arariboia, Mundurucu e Trincheira Bacajá, onde a situação é bastante crítica, devido à ação de garimpeiros, madeireiros e ruralistas. A medida consta na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709, de 2020, cujo objetivo é evitar que a omissão do Poder Público coloque em risco a saúde e a subsistência da população indígena.

“No ano passado, em maio, fomos em Genebra e aprovamos a primeira resolução de saúde indígena em âmbito mundial. Lá, já havíamos colocado a necessidade de aperfeiçoamento da nossa atuação e vamos entregar à ministra Nísia Trindade e ao presidente Lula uma minuta da nova política nacional de saúde indígena”, explica Tapeba. “No território Yanomâmi, vamos criar uma força-tarefa, em parceria com outras secretarias, para que a gente consiga dar respostas mais urgentes, tendo em vista que a Sesai atua com um modelo de atenção básica limitado. Assim, com esse conjunto de forças, a gente reforça o cuidado integral da população indígena dentro do próprio território. Isso vai envolver a contratação de mais médicos e outros profissionais que atuam na saúde indígena, a implantação de sistemas de abastecimento de água e tecnologia para ampliar o serviço de telessaúde e ter condições de oferecer internet e energia. Se 2023 foi um ano de ações emergenciais, 2024 vai ser caracterizado como o início de ações estruturantes e permanentes no próprio território.”

“A gente não quer mais chorar pela morte de crianças, pela falta de profissionais de saúde na nossa comunidade. Morrer por diarreia, desnutrição e malária? Essas moléstias são evitáveis”, diz Júnior ­Hekurari. “O que fizemos com essas pessoas que estão nos matando e nos contaminando com metais pesados? O povo Yanomâmi está com alto índice de mercúrio no organismo, mais de 800%. Até quando?” •


SOB A SOMBRA DA FOME

Oito em cada dez indígenas dos povos Guarani e Kaiowá estão em situação de insegurança alimentar no Mato Grosso do Sul

Com o avanço do agronegócio, eles ficaram sem terra para cultivar – Imagem: Mário Vilela/Funai

Assim como os Yanomâmi, chama atenção a difícil realidade dos povos Guarani e Kaiowá na região de Dourados, em Mato Grosso do Sul. Quase 80% dos mais de 55 mil indígenas das duas etnias estão em situação de insegurança alimentar, dos quais um terço dos casos é considerado grave ou moderado. Apenas 23% da população vive em condições de segurança alimentar e nutricional. Os dados constam em um estudo publicado no início de fevereiro pela Fian Brasil, organização internacional voltada para a defesa dos direitos humanos e, mais especificamente, no direito à alimentação.

Na terça-feira 27, o relatório da pesquisa foi anexado a uma petição apresentada, em 2016, à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em Washington, nos EUA. “Há mais de 500 anos estamos sendo expulsos de nossos territórios e ainda enfrentamos problemas que envolvem a questão da saúde, educação e alimentação. Não é de hoje que estamos morrendo por falta de apoio, por causa da fome, além dos ataques de todos os lados em relação aos nossos territórios, seja pela Justiça, seja pelas leis do Congresso Nacional. Por isso fomos à Corte Interamericana, para mostrar ao mundo como vivemos”, desabafa Elizeu Lopes, liderança do território Kurusu Ambá.

Apesar do grande número de indígenas Guarani e Kaiowá na condição de insegurança alimentar, a situação já foi pior. Em 2013, quando a Fian Brasil realizou a primeira pesquisa de campo na região, 100% da população tinha algum tipo de insegurança alimentar e nutricional, com 28% passando fome e em quase 60% o quadro era moderado. Para Lucas de Faria, um dos coordenadores da pesquisa atual, a leve melhora de lá para cá deve-se à maior permanência dos indígenas nos territórios, mesmo com os intensos conflitos de terra na região em que o agronegócio avança de forma violenta.

“A gente percebe uma certa incerteza na ocupação do território no âmbito da autonomia produtiva. Conforme os indígenas vão vendo que não existe nenhuma reintegração de posse, que estão conseguindo permanecer no território, eles passam a ter uma maior segurança no plantio, influenciando diretamente nas condições nutricionais deles. A alimentação está vinculada à produção de roça”, explica Faria, acrescentando que o acesso a políticas sociais, como o Bolsa Família e a distribuição de cestas básicas, também é determinante na segurança alimentar dos indígenas, mas que, não raro, muitos são excluídos­ dos benefícios por pressão política dos ruralistas.

Para a secretária-geral da Fian Brasil, Nayara Côrtes Rocha, o enfrentamento do problema passa pela demarcação das terras indígenas. “É preciso demarcar tanto para os indígenas ficarem mais tranquilos em relação à violência e ao despejo quanto para eles conseguirem ter mais autonomia nos territórios. Eles precisam também de acesso à água. Os rios, em geral, são bastante contaminados por agrotóxicos.”

O Ministério dos Povos indígenas criou um Gabinete de Crise para diagnosticar as violações contra os povos Guarani e Kaiowá e iniciou um ciclo de visitas às áreas retomadas. Segundo a pasta, quase todas as áreas visitadas estão cercadas por fazendas que cultivam soja e milho, culturas que recebem frequentes aplicações de agrotóxicos, com pulverizações aéreas ou terrestres, sendo comuns episódios de contaminação nas comunidades indígenas, comprometendo o plantio e a alimentação dessas populações.

Publicado na edição n° 1300 de CartaCapital, em 06 de março de 2024.

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